Pesquisar este blog

domingo, 26 de abril de 2020

26/04 -III DOMINGO DA PÁSCOA: MISERICORDIAS DOMINI


     "Misericordias Domini in aeternum cantabo"- Cantarei eternamente as misericórdias do Senhor. O Salmo que intitula o Domingo de hoje, o 89 ° em nossas Bíblias (recomendo que você o leia inteiro)é o tributo de louvor de um autor exultante e grato. No entanto, este jubiloso êxtase não se deve a meras bençãos terrenas, mais ao caráter e fidelidade do Senhor, que a tudo transcende, nunca caduca e pode subjugar sem nenhuma dificuldade as maquinações inimigas, quer humanas, quer demoníacas. A aliança estabelecida com Davi seria perpétua. Certamente que os corações dos judeus fiéis, ao longo dos séculos, devem ter se turbado, ao contemplar a promessa de um Reino davídico eterno, diante do fato concreto da pobreza e inexpressividade política do acuado Reino de Judá. Como crer nas promessas de triunfo sobre o "Mar" (nações pagãs e forças hostis à Deus e seu povo), diante das hordas de assírios, egípcios, edomitas, arameus e outros povos, que com o ímpeto de ondas acometiam as plantações, cidades e fortalezas de Judá? Como crer no triunfo sobre Raab (em outras versões, Egito – não há relações com a prostituta de Jericó que acolheu os espiões hebreus), monstro mítico, semelhante ao Leviathan, relacionado ao caos primitivo, às trevas e as forças da destruição. quando o mal e a morte vicejavam sobre o mundo?

     Quando Jesus Cristo, descendente de Davi, triunfou sobre o "mundo" e o sistema (Jo 16.33); quando ele esmagou a serpente na Cruz (Gn 3.15), quando o Dragão acusador foi lançado fora (Ap 12.10), quando o falso valente foi amarrado por alguém mais forte (Mc 3.27), as palavras do Salmo se cumpriram, embora ainda não tenha chegado a consumação final (escatologia do "já" e "ainda não"). Bem-aventurado é o povo que caminha a luz de seu rosto, rosto que ilumina todo homem que vem ao mundo. Os que tropeçaram na "Rocha eterna', por estabelecer uma falsa justiça baseada em suas próprias obra, preceitos e políticas, continuam nas trevas e sombras da morte. Os que só pensam em amealhar vantagens nesta vida, não conseguirão encontrar aquilo que realmente importa. Mas os que cantam as misericórdias imerecidas e soberanas do Senhor, gloriando-se apenas na cruz de Cristo, serão tidos como àqueles à quem o Pai se alegrou em conceder o Reino (Lc 12.32).

     Que você, caro leitor, possa cantar as misericórdias de Deus, que está conosco em todos os momentos, e eleva-nos das miseráveis consequências do pecado à uma vida plena de sentido neste mundo, e plena, em todos os sentidos, no novo céu e na nova terra. Amém.








quinta-feira, 9 de abril de 2020

Quinta-feira Santa: O sacramento da Eucaristia, o amor e o serviço fraterno


        

                                            (Ano A – Evangelho de S.Mateus 26.17-32)

"Antes da ceia, Jesus aos seus discípulos/ Lavou os pés com grande contentamento/ durante a ceia Jesus anunciou/ com grande gosto o seu novo mandamento." 1. Na Quinta-feira da Paixão, são lembrados o mandamento do amor, o ritual do lava-pés e a instituição do Santo Sacramento da Eucaristia.
                Jesus quis celebrar o "Sêder"(סדר)2, refeição ritual, com os seus discípulos, durante o período litúrgico da Parasceve, preparação para o dia principal da Páscoa (Pessach), quando os cordeiros eram imolados. Enquanto eles agiam como crianças na fé, disputando prêmios e recompensas no Reino dos Céus (Lc 22.24- assim como nós o fazemos até hoje), Jesus decide mostrar que o caminho para baixo é o único caminho para cima. Cingindo uma toalha, realiza a humilhante tarefa de lavar os pés dos Doze, tarefa reservada a escravos (Jo 13.1-17). Afirma que a quem já foi limpo, apenas os pés necessitam ser lavados. Nós, que fomos lavados pelo santo Batismo (Tt 3.4-5; I Pe 3.21; Mc 16.16; Jo 3.5), não precisamos de outros ritos de purificação ou "marcos de conversão". No entanto, que as sujeiras diárias da caminhada na vida terrena sejam sempre lavadas pelo arrependimento sincero diante de Deus (I Jo 2.1). E seguindo a orientação do Senhor, devemos servir e honrar nosso irmão, por amor sincero e profundo (Jo 15.17; I Jo 3), e não mero dever ou “medo do inferno” (I Jo 4.18). Nesta santa comunhão entre o povo santo, perdoamos e somos perdoados (Lc 6.37). O rito de lava-pés é praticado até hoje, nos cultos/missas de Quinta-feira Santa nas igrejas mais litúrgicas e tradicionais. É considerado uma "ordenança", ao lado do batismo e da Ceia, por alguns grupos anabatistas e pentecostais.

                Jesus estabeleceu então um dos três meios de graça para a humanidade: A Palavra, o batismo e o Sacramento do Altar (também conhecido como Ceia do Senhor, Santa Ceia ou Eucaristia). Após tomar o pão, "deu graças". Isto não indica como muitos pensam atualmente, uma oração espontânea, improvisada e simples. Na verdade, Jesus recitou as preces litúrgicas judaicas, de ações de graças ao "Deus do Universo", pela criação, libertação do cativeiro e eleição de Israel. Em tais preces é inspirada a "Grande Oração de Ação de Graças", típica das liturgias católica3, ortodoxa4, luterana5, anglicana6 e de diversas congregações protestantes. O rito seguia "no padrão". Então, de maneira estranha, Jesus considera o pão (até então auxiliar na santa refeição), como o elemento principal na ressignificação do rito à luz do que deveria acontecer:

                "Tomai e comei. Isto é o meu corpo que é partido por vós". Ao menos uma vez por ano, católicos, ortodoxos, coptas, armênios, luteranos, anglicanos, reformados, batistas, metodistas, pentecostais, adventistas, evangelicalistas e diversos outros cristãos ouvem as célebres palavras. É triste o fato de que este santo sacramento, que deveria ser "vínculo de unidade", tenha se tornado motivo de contradição. Diferentes ideias a respeito da natureza da presença de Cristo, de quem pode participar e da liturgia utilizada levaram a intermináveis conflitos a respeito do assunto. Tais questões devem ser tratadas com amor, diálogo e tolerância. Mas não podemos nos abster da teologia bíblica a respeito do assunto. Os luteranos creem e confessam que, ao dizer "Isto é o meu corpo", tais palavras devem ser interpretadas em sentido simples. Jesus não disse: "Isto simboliza o meu corpo" (visão memorialista/zwingliana), nem "Meu espírito estará presente, fazendo lembrar-vos do meu Corpo" (visão reformada/calvinista), tampouco "Isto deixará de ser isto e se transformará no meu Corpo" (visão católica romana/transubstanciação). Evitando racionalizações humanas , especulações frívolas e emocionalismos, cremos, seguindo a Igreja Antiga e os Santos Pais (como Justino7, Irineu8. Inácio9 e Ambrósio10), na presença real, substancial e corporal de Cristo no sacramento (União Sacramental. Luteranos NÃO creem em consubstanciação). Nas palavras de Lutero,  a santa ceia "é o Corpo e o Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, para ser comido e bebido por nós, sob as espécies do pão e do vinho"11. Ele está presente "com, sob e em as espécies". O pão permanece sendo pão. O vinho permanece sendo vinho. No entanto, o corpo e o sangue físicos de Cristo, mediante a proclamação das palavras, tornam-se realmente e objetivamente unidos aos elementos físicos. Isso é um mistério de fé, que devemos humildemente aceitar e crer, sem buscar subterfúgios ou explicações de nossa ínfima mente. No sacramento nos são concedidos também vida e perdão dos pecados11. Da mesma maneira que o amor divino se faz presença física, nosso amor pelos irmãos deve se traduzir em obras concretas.

                Os que objetam que Jesus não poderia estar presente, inteiro, ao mesmo tempo em que distribuía seu corpo para ser comido pelos doze, parecem esquecer que a realidade do corpo físico do Senhor age milagrosamente    pelo fato de estar em União Hipostática (Jo 1.14)12 com a Segunda Pessoa da Trindade, de forma indissolúvel, devido a uma "comunicação de atributos" (communicatio idiomatum) e a onipotência divina, o Corpo físico de Cristo pode perfeitamente partilhar dos atributos de sua divindade, incluindo a onipresença. Nenhum ser ou ente nos céus e na terra jamais partilhou ou partilharás de duas naturezas (humana e divina), substancialmente unidas, de maneira inconfundível e indivisível. Portanto, é impossível qualquer comparação perfeita com as criaturas. Qualquer distorção desta doutrina pode redundar em nestorianismo ou (no outro extremo), monofisismo.

                O fato de todos os discípulos (que mais tarde, excetuando-se João, o abandonariam), incluindo Pedro (que o negaria pouco depois) e até o traidor, Judas, ter recebido o sacramento das mãos do Senhor (pois "já estavam limpos", como lemos a pouco). nos alerta do risco de tentar construir uma Igreja apenas de "puros e regenerados", como apregoavam os donatistas (na Igreja Antiga) ou os anabatistas (na época de Lutero). A tentativa de separação arbitrária, legalista, precisa e perfeita entre o joio e o trigo (Mt 12,24-30) têm levado a um problema gravíssimo: a soberba luciferiana, a tentativa de construir o Reino dos Céus a partir de nossas próprias forças e noções equivocadas.

                Termino citando o hino eucarístico “Deus seja louvado e bendito”, do Dr. Martinho Lutero:

“1-Seja bendito, Deus seja louvado por nos ter alimentado
com sua carne e com seu santo sangue, para o bem no-lo concede.
Kyrie eleison.
Senhor, pelo santo corpo teu, que da virgem Maria nasceu,
por teu sangue, Senhor, livra-nos de toda dor.
Kyrie eleison.

2- Seu santo corpo foi sacrificado, tendo a vida conquistado.
E para celebrar sua memória bem maior não dar podia.
Kyrie eleison.
Teu imenso amor te constrangeu que na cruz verteste o sangue teu.
Nossa culpa pagou, e o favor de Deus granjeou.
Kyrie eleison.


3- Que tua graça, ó Deus, nós obtenhamos,
e no teu caminho andemos; e para que não nos arrependamos, em fraterno amor vivamos.
Kyrie eleison.
Não nos abandone o Espírito, que conceda comedimento,
e que teu povo então viva em santa paz e união.
Kyrie eleison13

Referências:
1. Canto da Paixão do Senhor, disponível em: http://www.hinariodigital.com.br/hdcif/979.pdf
3. Prefácio Comum I, do Cânon Romano. Disponível em: http://www.catolicoorante.com.br/prefacios.html#I
5. Culto - modelo litúrgico. Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. Disponível em:
6. Book of Common Prayer (1662). Disponível em: http://justus.anglican.org/resources/bcp/1662/HC.pdf
7. JUSTINO DE ROMA. I Apologia. Col. Patrística vl. 3. Ed. Paulus.
8. IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. Col. Patrística vl. 4. Ed. Paulus.
9. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Esmirniotas. Col. Patrística vl. 1- Padres Apostólicos. Ed. Paulus.
10.AMBRÓSIO DE MILÃO. Sobre os Sacramentos. Col. Patrística vl. 5. Ed Paulus.
11. LUTERO, Martinho. Catecismo Menor. Disponível em: https://catechism.cph.org/pt/sacramento-do-altar.html
12. Novo Dicionário de Teologia -Ed. Hagnos

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Semana Santa: A Unção em Betânia e a Traição por Judas




                (Ano A - Mateus 26.1-14)

                Na Quarta-feira Santa (também chamada de Quarta-feira da Traição) relembramos a unção de Jesus pela mulher contrita, a traição por parte do íntimo amigo Judas Iscariotes, e a perfídia dos "ungidos do Senhor", que planejaram matar o Justo, o Autor da Vida (At 3.15).

                A Tradição católica ocidental realiza hoje o "Ofício de Trevas", rito de origem monástica, em que velas dispostas num candelabro são apagadas durante leituras bíblicas e orações. Muitas Igrejas protestantes possuem o rito de maneira adaptada, que é realizado na Sexta-feira Santa. A Igreja Ortodoxa entoa o belíssimo "Hino de Kassiani", datado do período medieval, no qual se expressa amor e contrição diante de Cristo, como o expressou a mulher que lhe ungiu1

                A mulher,  identificada como Maria de Betânia, derrama sobre Jesus um caríssimo perfume (nardo), que lhe demandou muitas economias. A fé, devoção e o santo quebrantamento da mulher garantiram que esta fosse uma "boa obra". A "Paixão Segundo S. Mateus (BWV 244)", de J.S. Bach, comenta a passagem com a declaração:

"Você, meu amado Salvador,
Enquanto seus discípulos
tolamente discutem
vendo esta piedosa mulher
com unguento o seu corpo
preparar para a sepultura,
permita-me, enquanto isso,
que dos meus olhos um fluxo de lágrimas
verta sobre sua cabeça como uma unção."2
 (tr. de Amancio Cueto Junior)

                A atidude de Judas Iscariotes, um dos Doze, chama a atenção. Sob aparência de piedade, critica o "desperdício" de Maria. Porque não ter dado o dinheiro aos pobres, ao invés de gastá-lo de forma sobeja? No entanto, como registra João, Judas disse aquilo por causa de sua avareza e cobiça (Jo 12.6). Pensava em seus próprios propósitos, e não agia por caridade. Certamente ele saberia usar o dinheiro de forma muito melhor! Tomado pela ganância, humilhado pela "trágica loucura" daquele ato, espelhando-se na perfídia de Aitofel contra o rei Davi (II Sm 15) e, talvez, frustrado com o pacifismo e a "inércia" de seu Mestre, decide trair o Filho de Davi. Várias passagens dos Salmos, nas quais Davi lamenta a traição de seu "íntimo amigo" (Sl 55.12-14; 41.9), são usadas pelos evangelistas e apóstolos com perspectiva messiânica, aplicando-as à Judas.

                Os Guardiães da Fé judaica, os sacerdotes do Senhor dos Exércitos, os doutores e intérpretes da Lei, se reúnem, a fim de pôr um fim num atrevimento do autoproclamado profeta Jesus de Nazaré. Como ousara expulsar do Templo aqueles que lá estavam com a anuência da autoridade religiosa e política constituída, e insinuara que os ministros do culto divino  eram ladrões e salteadores? Isso lembra certos discursos de "telepastores" : "Ah!  Quem são esses 'blogueiros vagabundos', que me criticam em nome do 'Evangelho puro e simples'? Essa gente desqualificada que mal saiu das fraldas, enquanto eu sou pastor há décadas, ungido por uma Igreja séria?".

                Judas junta-se ao plano maligno, vendendo seu Mestre e amigo por trinta moedas (denários) de prata, preço de um escravo, valor bem inferior ao do perfume derramado pela piedosa mulher. Uma genial cena do filme "A Paixão de Cristo"(2004)3, retrata Judas como um ser tão deformado pela sua vileza, que apanha as moedas lançadas ao chão como um cão apanha farelos e ossinhos. O preço da traição havia sido profetizado por Zacarias (Zc 11.12-13), séculos antes.

                A qual dos protagonistas deste dia queremos nos assemelhar? Á mulher que entregou tudo em contrição e amor, reputando por nada o seu dinheiro guardado por tanto tempo, contanto pudesse honrar os sofrimentos do amigo e mestre? Certamente, Maria de Betânia é um exemplo para aqueles que nada possuem, e por isso mesmo possuem tudo. Os quais, como uma vela, se consomem nas chamas da caridade, tornando-se radiantes de luz e paz, ao mesmo tempo que oferecem suas vidas no serviço divino. Ou queremos ser semelhantes àquele que, a exemplo do profano Esaú (Hb 12.16), trocou por nada àquilo que era mais valioso (Jr 2.11)? Certamente, Judas é um exemplo para aqueles que deixam os valores do Evangelho, odiando (I Jo 2.11) e ofendendo seus irmãos (Mt 5.22) pelas migalhas da política secular, estabelecendo alianças em torno de interesses econômicos ou pautas moralistas hipócritas, e em nome delas provocando dissensões e cismas nas Igrejas, cujas doutrinas e princípios lançam na lama!

Que aquele sem o qual nada podemos fazer (Jo 15.5), nos ajude e nos guie pelo caminho estreito!

Referências:

1 "Hymn of St. Kassiani".  Disponível em:  https://www.goarch.org/-/hymn-of-saint-kassiani