"E disse-lhes: Por
isso, todo escriba que se fez discípulo do reino dos céus é semelhante a um
homem, proprietário, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas". (Mt
13.52)
Pretendo iniciar aqui uma
série de artigos sobre as riquezas ocultas na História da Igreja. Muito tem se
falado em nossos dias de "se olhar para frente", "quem vive de
passado é museu" e outras frases do tipo que, apesar de serem úteis em
certos contextos, são totalmente estúpidas em outro. Buscando atrair as
multidões, muitas igrejas têm investido em uma nova liturgia, em novos
costumes, em novas doutrinas, pois senão, dizem eles, as pessoas (especialmente
os jovens), não virão. Investe-se num show, onde o emocionalismo é elevado ao
extremo, potentes sistemas de som fazem tremer a terra, os pastores se
assemelham a animadores de palco, buscando afagar o ego dos fiéis. As pessoas
querem se sentir bem, sentir que são importantes, etc. Esse pragmatismo tem se alastrado das igrejas
pentecostais de segunda e terceira onda, de onde se originou, para as igrejas
tradicionais e pentecostais históricas.
Um tesouro doutrinário, espiritual e litúrgico de dois mil anos tem sido lançado
fora, pois pregar a salvação eterna não dá dinheiro, hinos antigos não agradam
os jovens, pregar doutrinas afasta as pessoas, etc. Os tradicionais cultos
cristãos, que eram teocêntricos, visando a glória de Deus acima de tudo, se
tornam meios de fuga para pessoas confusas em meio a labuta de cada dia. O que
quero mostrar nesta série de artigos , são as coisas boas de nossa nobre
história, e sugerir como coisas boas dos tempos atuais podem dialogar com elas.
O versículo que escolhi para o início do artigo pode ser aplicado a isto:
aproveitando o que há de bom no passado e no presente, dentro do contexto
eclesiástico.
TEOLOGIA: DOIS MIL ANOS
DISCUTINDO SOBRE AS VERDADES DE DEUS
No meio evangélico
brasileiro, ainda temos certo receio da teologia. Alguns, utilizando textos
fora do contexto, dizem que não devemos estudar sistematicamente as verdades da
fé, pois "a letra mata" (Clique aqui para ver o artigo que eu escrevi
há alguns anos sobre o assunto). Há aqueles que dizem que os teólogos tentam
ser os "psicólogos de Deus", o que seria um grande absurdo. E há
aqueles que simplestemente não pensam no assunto, deixando "a banda
passar" ao som de mantras gospel e pregações de auto-ajuda.
A Teologia cristã tem
suas bases na teologia judaica, desenvolvida por grandes mestres como Hilel,
Shammai, Gamaliel e outros. Os judeus da época de Cristo haviam desenvolvido
sistemas de interpretação de seus textos sagrados, e se organizavam em grupos,
de acordo com crenças, práticas e contextos sociais, como os fariseus, os
saduceus, os essênios, etc.
Pode parecer estranho
para muitos de nós, que costumamos pensar de forma desdenhosa ao ouvir o termo
"fariseu", que esse grupo tenha influenciado muito a nascente
teologia cristã. Vale lembrar que Jesus criticava os excessos e a hipocrisia da
maioria dos fariseus,e não a doutrinas deles em si. Nosso Senhor e seus
apóstolos pregavam a ressurreição do corpo, a existência de anjos e demônios e
outras crenças em comum com esse grupo. O próprio apóstolo Paulo se
identificou, em vários aspectos, com os fariseus. O monoteísmo e os atributos
morais e ontológicos de Deus são a principal herança teológica judaica, assim
como a lei moral.
Com o tempo, era natural
que os seguidores do Mestre se afastassem do judaísmo e rumassem para o
surgimento de uma tradição própria, que bebia em fontes judaicas mas trazia
novos elementos, como a expiação atravéz de Cristo, a inclusão dos gentios no
povo de Deus, uma Nova Aliança, e uma moral extremamente nobre, que os ensinava
a amar até mesmo seus inimigos. Temos nas Escrituras do NT o desenvolvimento
moral e doutrinário do nascente cristianismo sobre "as próprias
pernas". O apóstolo Paulo, em suas epístolas, dá a base doutrinária
compartilhada até hoje pelas tradições cristãs. Tratando dos citados assuntos e
de muitos outros, como a universalidade do pecado, a divindade de Cristo e sua
segunda vinda, ele torna-se o principal teólogo da história cristã. Paulo teria
morrido por volta da década de 60d.C.
Por volta da década de 90 d.C., morre João, o último dos apóstolos. Todos os
livros que hoje recebemos como canônicos já haviam sido escritos.
Mas como esses livros
foram interpretados? Quem selecionou a lista dos que fariam parte da Bíblia?
Como continua essa história? Infelizmente, como já disse outro irmão da
Assembleia de Deus, para muitos evangélicos, há um grande vazio entre as
páginas do Novo Testamento e o surgimento de suas tradições (que raramente tem
mais de cem anos). Eu proponho um passeio pela História da Igreja, para que com
grande alegria possamos constatar que a promessa do Senhor, de que as portas do
inferno não prevaleceriam contra a Igreja, é verdadeira e fiel.
O período que se segue ao
dos apóstolos, é chamado de "patrístico". Os "pais da
Igreja" foram os primeiros teólogos a escrever baseados nos dois
testamentos. (Neste artigo, você pode saber um pouco mais sobre eles). Lutando pela verdadeira fé, preservada na
Tradição da Igreja, enfrentando perseguições e martírios, orando e estudando,
dando testemunho diante de reis e generais, esses homens interpretaram as
Escrituras, chegando em consensos doutrinários expressos através de credos e
tratados. Dessa forma, complicadas questões que as Escrituras nos apresentam,
como a natureza e as pessoas da divindade, o pecado e a graça, as naturezas de
Jesus Cristo e o sacramentos, foram se esclarecendo. Esses homens também
combateram perniciosas heresias que mestres ímpios tiravam de suas mentes
poluídas.
Uma das primeiras
heresias a surgir no meio cristão foi o gnosticismo. Mistura de certos
princípios cristãos com o paganismo dos gentios e deturpadas escolas
filosóficas gregas, esse grupo pregava que suas próprias interpretações das
Escrituras, conhecimentos místicos transmitidos a certos iniciados e uma boa
dose de ocultismo, eram a verdade de Cristo. Surge então um valoroso bispo,
Irineu, que combate magistralmente esse erro. Irineu nos mostra que a
verdadeira fé permaneceu entre os bispos e presbíteros da Igreja, que passavam
adiante a Tradição e zelavam pelos textos do Novo Testamento (que, na época,
ainda não estavam 100% definidos). Não havia espaço para novas revelações ou
interpretações deturpadas. Posteriormente, outro religioso, Vicente de Lérins
irá nos dizer que a ortodoxia (verdade de fé), ao menos nos pontos básicos, é
perene e universal, enquanto a heresia é cronologicamente e geograficamente
limitada.
Outras heresias foram
surgindo na Igreja, como o maniqueísmo, o donatismo, o novacianismo,etc. As
mais perniciosas eram as corrupções da verdade sobre a natureza de Deus. Assim
sendo, Tertuliano, teólogo do século II, cria o termo Trindade para se referir
ao Deus vivo e verdadeiro, em oposição aos hereges sabelianos, que diziam não
haver três pessoas na divindade, mas sim três manifestações diferentes da mesma
pessoa. Mais de um século depois, o presbítero Ário irá afirmar que Jesus Cristo
não é Deus verdadeiro com o Pai, mas sim um deus inferior e criado. Atanásio de
Alexandria e outros santos homens de Deus se levantarão contra essa heresia,
estabelecendo de forma definitiva a doutrina da Trindade tal qual afirmada hoje
pelas verdadeiras igrejas cristãs.
Na época, as lideranças
discutiam tais assuntos promovendo "concílios ecumênicos", que eram
reuniões gerais da igreja, ou seja, convocando líderes de todas as partes. O
primeiro destes concílios foi o de Niceia, no ano 325, que afirmou, à luz das
Escrituras e da Tradição,a divindade plena de Jesus Cristo. O segundo concílio
foi o de Constantinopla, em 381, que afirmou a personalidade e divindade do
Espírito Santo, além da natureza humana do Salvador. O terceiro e o quarto concílios ecumênicos foram os de Éfeso
(em 431) e Calcedônia (451), que trataram das duas naturezas (humana e divina)
do Senhor Jesus e a ligação entre elas. Esses quatro concílios afirmaram
verdades que hoje em dia são aceitas pela esmagadora maioria dos teólogos
sérios.
Mas alguém pode dizer:
mas esses concílios não seriam uma violação do princípio de que apenas as
Escrituras devem dirigir a Igreja? De modo nenhum. Os concílios apenas
organizaram de forma definitiva e sistemática as doutrinas da Bíblia. Assim
sendo, antes dos concílios de Niceia e Constantinopla ensinarem a doutrina da
Trindade, a mesma Trindade era adorada nas orações, nos hinos e na liturgia da
Igreja, desde a época dos apóstolos.
O cânon do Novo
Testamento começa a ser definido no séc. II, com Irineu, o cânon de Muratori e
outros autores. Geralmente, havia consenso quanto aos evangelhos e as cartas
paulinas, mas obras como as epístolas aos Hebreus e as segunda e terceira de
João, e o Apocalipse provocaram certo debate. O cânon tal qual conhecemos, com
os vinte e sete livros, aparece de forma definitiva na Carta Pascal de Atanásio
(367) e num concílio do Norte da África(393). Não, a Bíblia não caiu do céu com
capa preta e tudo. Foram necessários três séculos para que o cânon se formasse.
No entanto, podemos ter segurança de que estes livros eram exatamente os que o
Espírito Santo queria. Uma série de critérios seguros foram adotados para se
definir o cânon. Entre eles, temos: 1. Autoria datada do primeiro século, da
parte de algum apóstolo ou de alguém intimamente ligado a ele 2.Estar de acordo com a regra de fé, conjunto
de ensinamentos passados pelos cristãos de geração em geração através dos
legítimos presbíteros da Igreja, como vimos no caso de Irineu 3. A frequencia e importância de tais textos
na liturgia das comunidades cristãs fiéis de todo o mundo, com especial
destaque para as igrejas de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma,
consideradas as sedes mundiais do Cristianismo.
Os pais da Igreja
abordaram vários outros assuntos também, como escatologia (Irineu,
Agostinho,etc.); a natureza da igreja e dos sacramentos (Cipriano, Agostinho,
Ambrósio,etc.), pecado, graça e livre-arbítrio (principalmente Agostinho).
Esses teólogos ortodoxos foram pedras vivas de grande importância no edifício
espiritual da Igreja, e são para nós grande fonte de conhecimento e
espiritualidade. Os reformadores estudaram profundamente os pais, e no meio
evangélico atual surgiu um novo interesse nestes santos, que nos precederam no
sagrado caminho da fé. Vários grupos heréticos de nossos dias reavivam heresias
daqueles tempos, e é importante estudar como esses santos os combateram. É
necessário em nossos dias o estudo da Patrística para melhor entendimento de
como se desenvolveu a Igreja primitiva e as bases de nossa fé.