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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A virgem Maria nas Sagradas Escrituras

Neste segundo artigo sobre Maria - a portadora da Palavra Encarnada de Deus (Jo 1.14) – desejo analisá-la, como um leigo curioso e dedicado, de acordo com os relatos das Sagradas Escrituras (que são a nossa regra de fé e prática).

Em primeiro lugar, é curioso notar que, mesmo possuindo papel importantíssimo na “história da salvação”, Maria é citada relativamente poucas vezes nos relatos canônicos. De maneira literal, só podemos vê-la mencionada diretamente nos quatro Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos (em perspectiva profética ou alegórica, outros textos podem ser apontados).Tais menções se dão nos contextos da encarnação, da teofania (representada pelo primeiro milagre) e dos sofrimentos da Paixão de Senhor, mostrando que Maria depende totalmente de Cristo, e não possuiria valor à parte dele. Com a ótica  luterana no Evangelho de Cristo (Solus Christus), vamos partir dos relatos diretos e claros.

EVANGELHO SEGUNDO MATEUS: A MÃE DO “DEUS CONOSCO”

No Evangelho de Mateus1, podemos ver que Maria2, uma piedosa moça judia, era desposada com José ( que era descendente do grande rei Davi). Na cultura da época, isso equivalia a uma espécie de “noivado”. Embora ainda não houvesse uma vida comum, ambos estavam comprometidos, de maneira que, caso um deles violasse a castidade, seria considerado adúltero. Pelo que sabemos daquele contexto social, Maria provavelmente era uma adolescente, ainda na puberdade. Segundo o evangelista, ela "engravidou pelo poder do Espírito Santo", sem a participação masculina. Tal milagre cumpria, de maneira plena, a profecia tipológica de Isaias 7, e possuía diversos significados simbólicos (alguns dos quais já analisamos no artigo anterior). O texto que proclama Maria como mãe do Emanuel – o “Deus conosco”- é uma base para o título “Theotokos”. A doutrina da maternidade divina é tão bíblica quanto a da Trindade.. Cirilo de Alexandria (375-444 d.C.) provou-o com maestria3.O foco dessa narrativa é o cumprimento da antiga promessa, e a salvação vinda do Senhor. Isso é representado pelo significado etimológico do nome “Jesus”, adaptação grega do hebraico Yeshua/ Yehoshua, cujo significado é “Yahweh é salvação”. A primeira personagem bíblica com tal nome foi o sucessor de Moisés, cuja variante, nas Bíblias ocidentais, é “Josué”. Tal paralelo foi muito citado pelos Pais da Igreja.4

No capítulo 2, com a conspiração do rei Herodes para matar o rei profetizado, José, Maria e o menino fogem para o Egito. Na simbologia bíblica, o Egito é identificado com o mal. O retorno ao Egito era uma das maldições prometidas caso o povo violasse a Aliança (Dt 28.68).

Em outras passagens de Mateus, Jesus é apontado como filho de Maria, em tom que denota simplicidade e pouca importância social, pelo povo dos arredores.

 

EVANGELHO SEGUNDO MARCOS: A MÃE DE JESIS

Considerado o mais antigo dos Quatro Evangelhos canônicos, que teria dado bases para Mateus e Lucas, juntamente com a hipotética “Fonte Q”5, Marcos é o que menos menciona Maria. Há apenas duas referências. No capítulo 3, é dito que a mãe de Jesus e seus irmãos (cujos nomes não são mencionados) queriam vê-lo (narrativa paralela a de Mt 12-13). A resposta de Jesus ensina que os laços que unem Deus ao homem, em comunhão espiritual, são mais fortes do que quaisquer laços carnais. No capítulo 6, algumas pessoas se surpreendem com a sabedoria de Jesus, questionando como o “carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago,e de José, e de Judas e de Simão” poderia fazer/ensinar tais coisas.6

 

EVANGELHO SEGUNDO LUCAS: BENDITA ENTRE AS MULHERES

O evangelista Lucas introduz um contexto familiar mais vasto para a mãe do Senhor. Ela seria prima de Isabel (da descendência de Aarão, irmão de Moisés), esposa do sacerdote Zacarias, que servia no Templo de Jerusalém. Os dois constituíam um casal justo, de idade um tanto avançada, que não possuía filhos. No entanto, durante um serviço litúrgico, o anjo Gabriel anuncia a Zacarias a desejada benção: ele e a esposa teriam um filho varão, que seria profeta de Yahweh e cumpridor do plano divino.

Gabriel apareceu, meses depois, na cidade de Nazaré, na marginalizada região da Galileia7. É então que Maria nos é introduzida no relato lucano. O anjo a saúda com grande honra. Ela havia sido plenificada com a graça divina;

Deus estava com ela; e ela seria honrada entre todas as mulheres. A reação de extremo espanto daquela adolescente pobre e humilde era mais do que esperada8. Enquanto tentava compreender o significado da mensagem divina, ela recebe maiores informações: pelo poder divino, conceberia um filho, que reinaria eternamente sobre a casa de Davi, e traria a salvação de Yahweh. Maria não se furta a missão. Após ser tranquilizada quanto seu obsequioso temor, responde com as famosas palavras “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra.” A entrega total e irrestrita seria uma marca notável na vida da mãe de Deus. Simbolicamente, podemos dizer: Eva havia desobedecido, servindo de canal para que Adão introduzisse o pecado na humanidade; Maria obedeceu, servindo de canal para a redenção através de Cristo, o “segundo Adão” (1Co 15.42-49).9

No verso 39, encontramos o relato da visita de Maria à Isabel. Diante da presença da prima, Isabel irrompe em reverência, chamando-a “Mãe do meu Senhor”. A expressão utilizada no original (μήτηρ τοῦ Κυρίου μου , transl.  meter tou Kyriou mou”) é considerada pelos teólogos como uma forte base direta para o dogma da Maternidade Divina (tratado no artigo anterior), pois o Senhor referido seria o próprio Yahweh10. Após ser novamente proclamada “bendita entre as mulheres”, A afirmação "bendita a que creu", é uma belíssima afirmação da justificação mediante a fé. Maria irrompe num cântico profético, que é conhecido na tradição como Magnificat11. O Magnificat possui notáveis paralelos com o “Cântico de Ana” (1Sm 2.1-10), no Antigo Testamento: a alegria em Yahweh, o louvor ao Deus que “inverte papéis” (exaltando os humildes e rebaixando os poderosos) e o tributo de glória unicamente a Ele. O texto inspirado obriga a todos os cristãos bíblicos tributarem honra e reverência a Maria, até o fim dos tempos (vs 48. Cf. 1Sm 2.30;  Pv 31.10; Rm 13.7).

No capítulo 2, há a narração do nascimento de Jesus. Numa rude estrebaria, em Belém da Judeia (terra do rei Davi), Jesus Cristo nasce. Maria demonstra grande cuidado com o menino, mesmo nas difíceis circunstâncias daquele parto. Pastores o adoram. Após oito dias, Jesus é circuncidado.

Posteriormente, ocorre a “Apresentação do Senhor no Templo”. Tal termo é uma inovação neotestamentária. No período da Lei, havia os rituais de redenção do primogênito (Êx 13 - meninos da tribo de Levi não estavam inclusos. Nem bebês do sexo feminino) e de purificação pós-parto (cujas regras se encontram em Lv 12). A oferta de Maria e José – duas pequenas aves – atesta a pobreza do casal. Na narrativa lucana, ambos os ritos são apresentados em conjunto, sob a perspectiva do cumprimento da profecia de Malaquias 3.1 – a vinda do Senhor ao seu templo. O velho Simeão, sobre quem pairava o Espírito Santo, canta um cântico sob inspiração divina12. Em seguida, entrega uma mensagem pessoal a Maria. Uma espada transpassaria a sua alma. Vemos uma clara profecia aos sofrimentos que a Virgem Mãe enfrentou durante o ministério e a morte de seu Filho. Em tais sofrimentos é baseado o hino litúrgico medieval Stabat Mater Dolorosa, que descreve as dores de Maria ao pé da cruz13. Maria também passou por severas provações na fuga improvisada e repentina para o Egito ( e sim, pode ser considerada uma REFUGIADA). No versículo 19, encontramos uma expressão que se repetirá no vs 51: “Maria guardava estas coisas no seu coração”. A Virgem Mãe nos dá um exemplo de discrição, moderação e ponderação em tais passagens.

A segunda parte do mesmo capítulo possui a narrativa, peculiar a Lucas, da ida do menino Jesus ao templo, com doze anos de idade. Consciente de sua missão, ele conversa sobre teologia com os doutores da lei e escribas, que se surpreendem com a sua sabedoria. De maneira estranha, seus pais parecem não considerar perigosa, a princípio, a sua ausência. Constatado o sumiço da criança, inicia-se uma busca angustiante, durante três dias. Interrogado por Maria sobre o porquê de seu sumiço, Jesus dá uma resposta ao mesmo tempo reveladora e enigmática, que leva Maria a reflexão. Apesar disso, o texto bíblico deixa claro que Jesus foi um adolescente submisso e amoroso, que cumpria o mandamento de honrar os pais.

Nos versos 27 e 28 do capítulo 11, diante de uma tentativa de honraria humana à sua Mãe, nosso Senhor mostra o que realmente é mais valioso. Santo Agostinho tece o seguinte comentário sobre a passagem: “Portanto, Maria é mais bem-aventurada em receber a fé de Cristo do que em conceber a carne de Cristo”.14 Maria, segundo a carne, tornou-se a mais elevada criatura. Mas, segundo a fé, conseguiu mais do que isso: a vida eterna.

 

EVANGELHO SEGUNDO JOÃO: A MULHER ARQUETÍPICA

Claramente diferenciado dos outros três Evangelhos (que são chamados de “sinópticos”), João foca nos aspectos teológico, dogmático e divino da vida e obra de Jesus. Portanto, não principia com uma narração da natividade, mas sim com a identificação de Jesus como o Verbo (λόγος,- transl. “Logos”) de Deus, que se fez carne e habitou entre nós.

Em João 2, durante a narrativa do primeiro milagre de Jesus, nas bodas de Caná, o termo "mulher" não é, como querem alguns detratores da Virgem bendita, algo de conotação depreciativa. Muito pelo contrário. O teólogo e erudito pentecostal britânico Myer Pearlman (1898-1943), judeu converso ao Cristianismo, afirma que a palavra usada, naquele contexto, indicava um tributo de elevado respeito, equivalente ao termo "senhora"15. Também salta aos olhos a associação com o texto de Gênesis 3.15 (o chamado “Proto-Evangelho”). Ao realizar seu primeiro milagre, demonstrando o domínio sobre a natureza, Jesus estaria querendo se referir a sua mãe como a mulher arquetípica, que recapitulava Eva. A mulher de cuja descendência viria àquele que poria fim à maldição original. Jesus chamaria Maria de "mulher" novamente, no momento em que morria sobre a cruz, consumando o plano da salvação.  A confiança de Maria na generosidade de seu Filho, e o conselho que ela dá aos serviçais- o conselho da obediência irrestrita- perpassam os séculos.

         Em João 19, do alto da cruz, em meio a sofrimentos físicos e espirituais indescritíveis, Jesus cumpre, de maneira plena e amorosa, o Quarto Mandamento. Num contexto social em que as viúvas eram extremamente vulneráveis, ele entrega sua mãe aos cuidados do "discípulo amado", o escritor do Evangelho. Embora não haja evidência interna a respeito da identidade deste, a Tradição cristã sempre afirmou que se tratava do apóstolo

João. A semelhança teológica/linguística com as epístolas que levam seu nome e a ausência de qualquer objeção séria a autoria joanina não deixam dúvidas quanto a isso. O fato de um amigo/irmão de fé ter sido designado para acolher Maria é considerado um forte indício de que Jesus seria o único Filho carnal dela. Alguns objetores da virgindade perpétua dizem que isso se deu apenas por que os supostos irmãos consanguíneos de Jesus, naquela época, ainda não criam nele. Tal argumentação me soa estranha, em vista de nunca ser apresentado, nos textos canônicos, algum relato de choque entre Maria e seus supostos filhos no tocante ao ministério e posicionamentos de Jesus. Os textos que já citamos mostram justamente o contrário.

ATOS DOS APÓSTOLOS: MARIA NA COMUNIDADE DOS FIÉIS

         A última menção bíblica a Maria se encontra no livro dos Atos dos Apóstolos (At 1.14). Ela é mostrada em participação ativa na comunidade dos seguidores de Jesus, com orações e súplicas, sob a promessa divina da vinda do Espírito Santo. Este fim um tanto abrupto das menções explícitas à Mãe de Deus na Bíblia talvez tenha dois significados principais: a mensagem que Seu Filho- e não ela - é o foco da religião cristã; mas também a dá a ela uma aura de atemporalidade. Ela desaparece da cena em oração e em comunhão com o povo santo. Em perseverança e devoção. Pertence ao ritmo da eternidade, e não deste mundo. Ela era uma serva, submissa à vontade de Deus, e que fundiu a sua própria vontade na dele.

 

SIMBOLOGIA E ARQUÉTIPOS MARIANOS

Desde o período da Patrística, diversas figuras e alegorias, de ambos os Testamentos, foram aplicadas à Maria pela Tradição cristã.  No Catolicismo Romano, o simbolismo chega a ser excessivo. 16

O primeiro arquétipo mariano reside na utilização da Mãe de Deus como personificação da semente justa, os descendentes de Eva que seguiram pelos retos caminhos de Abel e Sete. Dessa descendência, originou-se o povo de Israel, separado dos demais pelo próprio Deus, como nação sacerdotal sobre o mundo. Aqui se dá outro arquétipo mariano: A “mãe na fé”, representa pelas grandes mulheres do povo hebreu. O apóstolo Pedro, coluna da Santa Igreja, chama as mulheres cristãs de filhas de Sara (a esposa do patriarca Abraão -1Pe 3.15). A juíza Débora diz de si própria que fora divinamente levantada como mãe do povo de Israel (Jz 5.7).

A “filha de Sião”, símbolo dos “pobres de Yahweh”, o remanescente pobre, frágil e defeso da linhagem de Israel, personificado numa pobre moça h (2Re 19.21; Sf 3.14; Zc 2.14; Lamentações de Jeremias) é outro arquétipo mariano notável, que encontra expressão clara no Magnificat, (onde é vindicada por Deus).

O apóstolo Paulo menciona que Jesus, para redimir os que estavam sob a Lei, nasceu "de mulher", no tempo estabelecido por Deus (Gl 4.4). Para que Criador e criatura fossem reconciliados, era fundamental que Jesus não fosse, em linguagem popular, um "filho de chocadeira". A natureza humana que ele possuia não foi plasmada ex nihilo, mas gerada da substância de sua Mãe.

Por fim, duas figuras (possivelmente) marianas intimamente relacionadas são a mulher de Apocalipse e a Arca da Aliança. Vamos analisá-las num trecho à parte.

 

A MULHER DE APOCALIPSE 12 E A ARCA DA NOVA ALIANÇA

No capítulo 12 do Apocalipse, há a figura alegórica de uma mulher que dá à luz ao regente divino. Ela é perseguida por um dragão, foge para o exílio no deserto e possui outros filhos (designados com em nível subalterno – o “resto da semente”).   É muito comum, no catolicismo romano, que tal mulher seja identificada, imediatamente, com Maria. No entanto, a própria Bíblia de Jerusalém, considerada referência na teologia acadêmica católica (e cristã no geral) aponta para a Igreja (o povo de Deus, de todos os tempos e lugares, a já citada “semente justa”) como sendo a referência por trás do simbolismo17.  A identificação com Maria se dá apenas em um nível inferior, com os paralelos da tentativa satânica de matar Jesus (através de Herodes); o exílio18 ; a predestinação do Filho como governante supremo; sua ascensão aos céus; a perseguição subsequente ao “resto da semente da mulher” e a derrota de Satã após a vitória do Filho

O capítulo anterior do livro termina com uma menção a “Arca da Aliança” no santuário celestial. Devido à Antiga Aliança ter caducado em Cristo (o tema principal da Epístola aos Hebreus), e a profecia de Jeremias expressar claramente que a Arca deveria ser relegada ao total ostracismo dentro do plano divino (Jr 3.16-17), necessitamos de uma melhor identificação da Arca aqui mencionada. Num esquema de alegorias, tipos e paralelos, identificar Maria como sendo a Arca da Nova Aliança parece uma opção razoável. É o que faremos, na tabela abaixo. Coloco a ressalva de que trata-se de uma interpretação possível e pessoal, e não de um aritgo de fé explícito, que deve ser crido como teste de ortodoxia.


A Arca de Ouro, recptáculo da Antiga Aliança

Maria, a Arca da Nova Aliança

A nuvem da glória do Senhor cobriu o tabernáculo - no qual a Arca estava localizada (Êx 40.35). No texto da Septuaginta, o paralelo fica ainda mais claro.

O anjo anuncia que a sombra/nuvem do Senhor cobriria Maria (Lc 1.35).

A Arca da Aliança continha as tábuas da Lei, que eram “Palavra de Deus” (Êx 25.10-22)

Maria foi a portadora da Palavra (Logos) de Deus encarnada (Jo 1.14)

 

 

A Arca é levada, apressadamente, para a casa de Obed-Edom, nas regiões montanhosas da Judeia (2Sm 6.1-11)

Maria vai, apressadamente,  para a casa de Isabel e Zacarias, nas regiões montanhosas da Judeia (Lc 1.39).

Com vestes sagradas, Davi exulta e salta diante da Arca (2Sm 6.14)

João Batista – da sagrada linhagem sacerdotal de Aarão – exulta e salta no ventre materno diante de Maria (Lc 1.41). O termo grego para a exclamação de Isabel no versículo seguinte (ἀνεφώνησεν), é utilizado, na Septuaginta, exclusivamente em conexão com a Arca (1Cr 15.28; 16.4)

Davi pergunta, com temor, “Como virá a mim a Arca do Senhor?” ( 2Sm 6.9)

Isabel pergunta, com respeito e submissão: “Como é possível que venha até a mim a mãe do meu Senhor?” (Lc 1.43)

A Arca permanece por cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2Sm 6.11), que pé abençoada.

Maria permanece por cerca de três meses na casa de seus parentes (Lc 1.56). Por três vezes, na narrativa, são proferidos termos relativos a benção.

A Arca retorna, até por fim chegar o tempo de ser colocada no lugar mais nobre Jerusalém, o Templo,  onde a glória e a presença de Deus são reveladas (2Sm 6.12; 1Re 8.9-11).

Maria retorna ao lar e, por fim, vai a Jerusalém, onde o Senhor encarnado é apresentado no seu templo (Lc 1.56; 2.21-22). Cf. Ml 3.1

 

CONCLUSÃO

Mesmo tendo sido a mais importante das criaturas -a única que portou o próprio Deus, e da qual Deus tomou substância- Maria recebe poucas linhas no texto sagrado. Surgindo como uma personagem humilde e insignificante,  desaparecendo dos relatos de maneira abrupta e misteriosa, ouvindo mais do que falando, dedicando-se totalmente a Deus e não tendo nenhum pecado intencional relatado, ela nos oferece um exemplo de contemplação e submissão. Mais do que isso: o exemplo de uma serva fiel, que não quer honrarias para si, mas cuja doce voz ressoa em nossos ouvidos. nos exortando a obedecer irrestritamente o Deus encarnado. O qual, sendo Aquele que a formou (juntamente com toda a humanidade) do pó da terra, também quis formar-se da substância dela, alimentar-se de seu seio e descansar tranquilamente em seu colo.

No terceiro (e último) artigo, tratarei da figura de Maria na arte, liturgia e espiritualidades da tradição evangélica (luterana).

NOTAS E REFERÊNCIAS

1Embora o próprio texto não aponte quem é o seu autor, a tradição  dos Pais, dos Doutores medievais e dos Reformadores é unânime na atribuição da  autoria do primeiro Evangelho canônico a Mateus/Levi. Originalmente um cobrador de impostos, deixou tudo para tornar-se seguidor de Jesus (tornando-se um dos Doze). Tem como características uma forte ênfase judaica (descrições, terminologia, etc.), com recorrentes citações proféticas e outras “pontes” com o Antigo Testamento.

2O significado do nome Maria não é claro. Sabemos que é equivalente a Mirian(cuja única ocorrência, no AT, é referente a irmã de Moisés). Entre as diversas origens prováveis, estão o termo egípcio mery (“amada”), a raiz siríaca mar (senhor) ou uma expressão hebraica que designa dureza, solidez, resistência. O termo “Estrela do Mar”, muito utilizado na literatura devocional (principalmente na forma latina, Stella Maris), é baseado, muito provavelmente, num mal-entendido No link a seguir, da Catholic Encyclopaedia, há um interessante – embora desatualizado -estudo sobre a etimologia do nome .

https://www.newadvent.org/cathen/15464a.htm   Acesso em: 23/08/2020.

3”O sapientíssimo Paulo, dispensador dos mistérios divinos e ministro da pregação do Evangelho, deixará isto claro dizendo: Tendo em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo, o qual sendo de condição divina (...) esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, fazendo-se semelhante aos homens (...). Pois ainda que seja Deus, nascido de Deus pela natureza, o Resplendor da Glória e (Exata) Impressão daquele que o gerou, se fez homem, não porque tenha se mudado em carne ou tenha sofrido alguma mistura (...), senão porque (...) desejou como Deus tornar a carne, que é mortal e pecaminosa, superior tanto à morte quanto ao pecado, e restaurá-la ao que era no princípio, tendo-a tornado sua, não (como alguns dizem) sem alma, mas animando-a com alma racional: ainda, não desdenhando de seguir o caminho até aqui condizente, é dito que Ele passou por um nascimento como o nosso, porém sem deixar de ser o que era. Pois Ele nasceu de maneira maravilhosa segundo a carne de uma mulher (...) Portanto, afirmamos que a Santa Virgem é também mãe de Deus.” (CIRILO DE ALEXANDRIA, em "Quod unus sit Christus?").

4 Por esta razão, os leitores não deveriam se surpreender diante de minha indignação ao receber a seguinte notícia (que também pode ser encontrada em outras fontes). Tal episódio pode ser considerado uma autêntica “Missa Negra”.

https://www.brasil247.com/brasil/weintraub-bolsonaro-e-josue-e-nos-as-trombetas-que-vao-derrubar-as-muralhas-de-jerico-a-esquerda                           Acesso em: 23/08/2020

5Teoria criada por eruditos bíblicos no séc XIX, baseada em evidências e comparação textuais, segundo a qual Lucas e Mateus provavelmente partiram de uma fonte comum, atualmente perdida, para compor seus respectivos relatos. Tal fonte é denominada “Q”. Conteria os discursos de Jesus. O evangelho de Marcos, por sua vez, teria sido redigido de maneira independente, e também utilizado por Lucas e Mateus.

6 Neste versículo, parece haver uma clara ligação familiar entre Maria e os chamados “irmãos de Jesus”, dificultando a hipótese de meros laços de amizade espiritual ou parentesco distante. Pensar que tais irmãos seriam filhos apenas de José é ir além do texto bíblico, e não podemos confirmar (nem negar) tal hipótese. Portanto, o versículo pode ser usado na discussão sob a doutrina da virgindade perpétua, como ponto de apoio para os que a negam.

7Cf. A fala preconceituosa de Natanael em João 1.46

8O Bem-aventurado Martinho Lutero (1484-1546) comenta isso nos seguintes termos: “É uma característica de Deus olhar para as coisas insignificantes. Por isso traduzi a palavra humildade por “nulidade” ou “ser insignificante”. Portanto, Maria quer dizer o seguinte: Deus olhou para mim, uma moça pobre, desprezada e insignificante. Ele poderia ter escolhido ricas, importantes, nobres e poderosas rainhas, filhas de príncipes e grandes autoridades. Poderia muito bem ter escolhido a filha de Anás ou Caifás  (...) Porém ele olhou para mim por pura bondade e usou para esse fim uma moça humilde e desprezada.” (comentário sobre o Magnificat)

9O paralelo entre Eva e Maria é explorado, de maneira magistal, por Sto. Irineu de Lião (c.130-200 d.C.), no III Livro do Adversus Haereses. Aproveito para tecer um comentário: de acordo com o apóstolo Paulo, a humanidade torna-se pecadora em Adão,e não em Eva. Portanto, caso quiséssemos usar a narrativa de Gênesis para criar algum tipo de discriminação de gênero, é o gênero masculino que estaria em “desvantagem moral”.

10Recomendo o seguinte artigo, de autoria do reverendo anglicano Gyordano M. Brasilino, sobre o tema

https://vineadei.wordpress.com/2018/03/04/por-que-maria-e-chamada-mae-do-meu-senhor-em-lucas-143/.  Acesso em: 22/08/2020 .

11Nome extraído no primeiro verso do hino no idioma latino, Magnificat anima mea Dominum. O Cântico de Maria é utilizado, até hoje, em liturgias Católicas, Ortodoxas, Anglicanas e Luteranas.

12Conhecido com o título latino de Nunc Dimitis, também possui vasto uso litúrgico.

13A letra do hino, juntamente com uma tradução, pode ser encontrada em https://www.letras.mus.br/monte-cristo/stabat-mater/traducao.html

14De virginitate, III

15 PEARLMAN, Myer. João: O Evangelho do Filho de Deus. CPAD, 1998.

16Um exemplo claro pode ser visto no Ofício da Imaculada Conceição, que pertence à Liturgia das Horas

Disponível em: https://www.liturgiadashoras.online/oracoesdiversas/oficio-imaculada

17Esse era o pensamento de Lutero. Em seu interessante cântico Ein Lied von der heiligen christlichen Kirche, aus dem 12. Kapitel der Offenb. Joh.”(Um hino sobre a santa Igreja Cristã, conforme Apocalipse 12), o reformador demonstra seu posicionamento. Uma adaptação portuguesa do cântico original pode ser encontrada neste link:                                 http://www.lutero.com.br/noticias/postagem/id/1212

18Embora haja uma diferença significativa nas descrições entre um exílio “no deserto” (conforme registrado no Apocalipse) e o exílio histórico de Maria e sua família no Egito (que, inclusive, possuía grandes e prósperas comunidades judaicas, como a de Alexandria), a aproximação se dá a nível simbólico. Conforme mencionado anteriormente, o Egito é relacionado, na Bíblia, com o exílio, a escravidão, o retrocesso.