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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

John Bunyan

John Bunyan by Thomas Sadler 1684.jpg Hoje, 30 de Agosto, o calendário litúrgico da Igreja da Inglaterra celebra a memória de John Bunyan. O autor de O Peregrino, o segundo livro mais publicado no mundo (atrás apenas da Bíblia), foi um pregador batista calvinista, que surgiu como uma figura simples e sem muita tendência à fama. Passou por difíceis situações na vida, mas guardou a fé até o fim. Vamos ver um pouco de sua vida e obra.

Nascido em 1628, na paróquia de Elston, a alguns quilômetros de Bedford, na Inglaterra, era filho de um pobre latoeiro (metalúrgico). Aos dezesseis anos, se alistou no exército parlamentarista, contra o rei Carlos I, durante a Guerra Civil Inglesa. Posteriormente, deixou o exército, se casou e constituiu família.

John Bunyan passaria por uma profunda depressão espiritual nos anos seguintes. Convencido de sua pecaminosidade, desesperado com as ilusões e vaidades da vida, agonizou por meses em sua indignidade, até conseguir descansar na graça de Deus. De grande valia em sua conversão foram os comentários de Martinho Lutero sobre a epístola aos Gálatas. Tornou-se então um fervoroso pregador leigo, ligando-se aos batistas reformados, que eram um dos grupos não-conformistas da época.

No séc. XVII, a Inglaterra havia passado por uma violenta guerra, em parte devida a religião, nas quais os anglicanos (ligados a Igreja da Inglaterra, igreja oficial da nação no período monarquista) e os puritanos (grupos de tendência calvinista rígida, que criticavam a igreja oficial e tomaram o poder sob a liderança de Olliver Crownwell) se enfrentavam, por vezes chegando ao conflito armado. Quando da restauração da monarquia, a política do rei Carlos II, que tivera o pai assassinado pelos puritanos, levou a uma instransigente perseguição aos não-anglicanos. Em 1660, Bunyan foi preso por não se submeter aos regulamentos anglicanos, que eram obrigatórios para todos os que queriam exercer a pregação pública. Ficou doze anos na prisão, nos quais escreveu sua autobiografia espiritual, Graça abundante para o principal dos pecadores. Em liberdade, assumiu o pastorado da Igreja Batista em sua cidade. Posteriormente, seria preso por seis meses, e foi na prisão que escreveu sua principal obra, O Peregrino.

Essa interessante obra se tornaria um dos escritos cristãos mais amados da História, sendo traduzida para inúmeras línguas, e gozando de popularidade até os nossos dias. Inspirou filmes e jogos eletrônicos. O livro é uma alegoria, que conta a história da peregrinação de Cristão, um pecador arrependido, que sai da Cidade da Destruição rumo à Cidade Celestial. No caminho, enfrentará vários inimigos, que representam as forças do diabo, do mundo e da carne, entrará em contato com figuras que representam as virtudes, visitará lugares que representam diversos aspectos da vida cristã, receberá itens e armas que lhe ajudarão na caminhada. Em cenários com aventura, diálogos e ação, que nos fazem sentir estar em um jogo de RPG, ele experimentará diversas situações, que de uma forma ou outra, se repetem na vida de todo aquele que quer servir a Cristo. O livro, por sua imensa popularidade e profundidade (apesar da linguagem simples e acessível), seria analisado teologicamente, filosoficamente e psicologicamente, por pessoas como o teólogo luterano Paul Tillich.

John Bunyan faleceu em 1688. Além de suas obras literárias, sua vida foi marcada por um fervoroso calvinismo, e pela tolerância e respeito com cristãos de outras denominações. 

Alguns trechos de obras de John Bunyan:

"Os dons são desejáveis, mas a graça abundante que acompanha os dons singelos é muito melhor que importantes dons sem a presença da graça. A Bíblia não diz que o Senhor concede dons e glória, mas que concede graça e glória. Benditos sejam todos a quem o Senhor concede verdadeira graça, pois está é certamente a precursora da glória." (Graça abundante para o principal dos pecadores).

"Se os eleitos fossem deixados entregues a si mesmos, eles, pela iniquidade de seus próprios corações, pereceriam como os demais. Tampouco poderiam, todos os argumentos razoáveis e persuasivos do evangelho de Deus em Cristo, prevalecer, para fazer uma pessoa receber o evangelho e viver...vemos, pois, que também existe a graça da eleição, e essa graça gentilmente predomina e vence o espírito dos escolhidos. Há um remanescente que recebe esta graça; eles são destinados para isso, desde antes da fundação do mundo." (Reprovação assegurada).

"Então uma mão misteriosa lhe ministrou algumas folhas da árvore da vida. Cristão aplicou-as sobre as feridas que recebera na peleja,e ficou de todo curado. Depois assentou-se naquele lugar, para comer do pão e beber do vinho que pouco antes lhe tinham dado. Assim fortalecido, seguiu seu caminho, levando na mão a espada desembainhada, com receio de que algum outro inimigo lhe saísse ao encontro". (O Peregrino)

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Agostinho de Hipona


               Amanhã celebraremos a memória de Agostinho de Hipona, o popular Santo Agostinho. Creio que todos nós já ouvimos falar sobre esse grande filósofo e teólogo da Antiguidade Tardia. Nesse artigo, pretendo falar um pouco sobre sua vida, testemunho, obra e teologia. Receio que meu pequeno artigo não fará jus à grandeza de sua mente, mas vou tentar
                Aurélio Agostinho nasceu no ano de 354 na cidade de Tagaste, na Numídia (atual Argélia). Era filho de Patrício, um pagão bem colocado na sociedade local, e de Mônica, uma piedosa cristã. Teve um irmão e uma irmã. Possuíndo destacada inteligência, estudou o currículo tradicional da época em sua adolescência. Na juventude, muda para Cartago, onde viverá com uma concubina, que lhe dará um filho, Adeodato. Vivendo de forma mundana, Agostinho se interessa por filosofia, e acaba por se tornar um competente professor de gramática. Em 373, ingressa na seita dos maniqueus, grupo herético que pregava o dualismo e um fatalismo pessimista.
                Em 383, embarca para Roma, em busca de fama, celebridade e riquezas. Tornando-se professor oficial de retórica em Milão (posição extramamente privilegiada na época), o Evangelho começa a penetrar-lhe o coração graças a sabedoria e aos sermões do sábio Ambrósio, bispo da cidade. Devido a essa influência, e as constantes orações de sua mãe, Agostinho começa a se enveredar por um bom caminho. Encontra nos escritos do filósofo romano Cìcero algumas ideias que o aproximariam da fé cristã. Posteriormente, descobre a filosofia platônica, que possuía muitos pontos em comum com o Cristianismo. Convencendo-se intelectualmente aos poucos, passa por uma experiência de conversão através da graça de Deus, em 386. No ano seguinte, é batizado por Ambrósio. Retorna ao Norte da África, onde será ordenado ao sacerdócio e, posteriormente, ao episcopado, na cidade de Hipona. Agostinho também vive temporariamente como cenobita (uma éspecie de vida monástica). Combate as heresias dos maniqueus, dos donatistas (rigoristas extremos) e dos pelagianos (que trataremos posteriormente). Morre em 430, enquanto Hipona estava cercada pelos vândalos, um povo de bárbaros germânicos.
                Agostinho legou uma vasta obra literária. Suas Confissões, autobiografia espiritual escrita em belíssima forma de oração, tornou-se um dos livros mais amados da espiritualidade cristã. Cidade de Deus, sua opus magna, foi a mais completa filosofia da história de seu tempo. Entre outras muitas obras, ele escreveu também: A Doutrina Cristã, Sobre a Trindade, Retratações, Comentários aos Salmos e O livre-arbítrio. Também deixou muitas cartas e sermões.
                Tendo experimentado a força arrasadora do pecado em sua juventude, Agostinho desenvolveu uma antropologia pessimista. O homem havia perdido todo o seu bem espiritual com a queda de Adão. Mesmo os bebês nasciam escravizados pelo pecado. Apesar de encontrarmos antecedentes em outros Pais da Igreja, como Cipriano, Tertuliano e Ambrósio, Agostinho pode ser considerado o grande arquiteto da doutrina do pecado original, que ensina a total miséria e incapacidade do homem. Restava ao homem a graça soberana de Deus. A pura misericórdia do Criador era a única esperança para o ser humano caído, depravado e indigno. Agostinho escreve vários tratados sobre o assunto, como: A graça de Cristo e o pecado original; O Espírito e a letra; Da Predestinação dos Santos, etc.   Sua visão da graça e predestinação influenciaria muitos teólogos medievais e, especialmente, os reformadores protestantes, como Lutero e Calvino. Agostinho teve de enfrentar o herege Pelágio, monge britânico que afirmava a bondade e a capacidade natural do ser humano, entregando a glória da salvação de forma  total ao livre-arbítrio humano.
                Como grande defensor da graça divina e do poder supremo de Deus, Agostinho combateu o erro dos donatistas, que afirmavam que a dignidade do sacramento dependia da dignidade do ministro (Ex: caso você descobrisse que o pastor que te batizou estivesse em pecado quando o fez, seu batismo seria inválido). Afirmou que os sacramentos nos são concedidos pelo próprio Cristo, dependendo exclusivamente da santidade e dos méritos do Deus encarnado. Defendeu também o batismo das criancinhas pois, como já foi dito, mesmo elas estavam escravizadas pelo pecado original. Segundo alguns teólogos, a doutrina do pecado original só se desenvolveu porque a Igreja precisou explicar o porquê do batismo dos pequeninos, que já praticava desde tempos imemoriais. Agostinho também combateu os arianos, que negavam o dogma da Santíssima Trindade, escrevendo um tratado teológico-filosófico sobre o assunto. Foi também um organizador da vida monástica comunitária. Graças a sua influência, a Idade Média veria o surgimento da Ordem Agostiniana. Contra a heresia maniqueísta, que outrora abraçara, Agostinho defendeu a doutrina bíblica de que Deus criou boas todas as coisas. Escreveu sobre praticamente todos os assuntos envolvendo a fé, como a teologia dos sacramentos, eclesiologia (condenou heresias e divisões na Igreja), escatologia (foi o grande defensor do amilenismo), a natureza e a inspiração das Escrituras,etc. Outrora atormentado com a questão do mal (o velho dilema sobre sua origem e permanência num mundo criado por um Deus bom), quando de seu trajeto para Cristo, descobriu a resposta: o mal não subsiste como essência em si próprio, mas é a ausência do bem (do mesmo modo que as trevas não subsistem como essência nelas próprias, mas são a ausência da luz).
                O bispo de Hipona também tratou de assuntos morais, políticos, filosóficos e práticos. Desenvolveu o conceito de guerra justa, que nortearia a práxis medieval: o cristão não poderia participar de uma guerra de pilhagem contra um povo pacífico, mas poderia pegar em armas, sob a liderança do Estado, para defender-se de um ataque injusto por parte de outro povo ou nação. Condenou a prática do suicídio. Era a favor da cooperação entre a religião cristã e o governo civil. Devido a essas e outras ideias, Agpstinho é considerado como a transição entre a Antiguidade e a Idade Média (pessoalmente, prefiro dar tal título a Gregório Magno).
                Agostinho foi uma dessas mentes geniais e piedosas com as quais Deus, de tempos em tempos, enriquece a Sua Igreja. Considerado o maior dos Pais da Igreja, Doutor da Igreja por excelência, Agostinho foi o intérprete oficial da Igreja Latina durante a Idade Média. Um monge sob sua influência, Martinho Lutero, iria dar origem ao grande avivamento que foi a Reforma Protestante. João Calvino, considerado o maior teólogo protestante da Idade Moderna, conhecia profundamente os escritos de Agostinho, e os citaria centenas de vezes, formulando a doutrina da predestinação incondicional. Entre outros grandes teólogos protestantes que elogiaram e se inspiraram em Agostinho, temos o batista reformado Charles Spurgeon, chamado de "o Príncipe dos Pregadores".
                
Alguns trechos extráidos dos escritos de Agostinho:

"Há duas coisas igualmente importantes na exposição das Escrituras: a maneira de descobrir o que é para ser entendido e a maneira de expor com propriedade o que foi entendido," (Da Doutrina Cristã).

"O Pai, o Filho e o Espírito Santo, isto é, a própria Trindade, una e suprema realidade, é a única coisa a ser fruída, bem comum de todos (...). Não é fácil encontrar um nome que possa convir a tanta grandeza e servir para denominar de maneira adequada a Trindade. A não ser que se diga que é um só Deus, de quem, por quem e para quem existem todas as coisas." (Da Doutrina Cristã).

"Se o caminho da verdade permanecer oculto, de nada vale a liberdade, a não ser para pecar. E quando começar a se manifestar o que se deve fazer e para onde se dirige, não se age, não se abraça o bem, não se vive retamente, se com o bem não se deleita e não se o ama. Porém, para que venha a amá-lo, o amor de Deus se difunde em nosso coração não pelo livre-arbítrio que radica em nós, mas pelo Espírito Santo que nos foi dado." (O Espírito e a letra).

"E o preceito, se é observado por temor da pena, e não por amor da justiça, não é observado com liberdade, mas com espírito de servidão, não é observado. Pois não é um bom fruto o que não procede da raiz da caridade." (O Espírito e a letra).

"A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício. Mas a atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde." (A natureza e a graça)

"Assim, toda a raça humana merece castigo. E se todos recebessem a punição, a punição não seria injusta. Por isso os que são libertados pela graça não se denominam vasos de seus méritos, mas vasos de misericórdia. De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Cristo Jesus a este mundo para salvar os pecadores, os quais ele conheceu, predestinou, chamou, justificou e glorificou?
Portanto, quem é a tal ponto insensato que não renda graças inefáveis à misericórdia daquele que libertou os que quis e cuja justiça não se haveria de inculpar mesmo que condenasse todos os seres humanos" (A natureza e a graça).

"Percebei como o Apóstolo, inspirado pelo Espírito Santo, previu muito antes os futuros adversários da graça de Deus. Além disso, asseverou que Deus opera em nós os dois, ou seja, o querer e o operar, que os pelagianos pretendem que sejam nossos, como se não necessitassem da ajuda da graça divina" (A graça de Cristo e o pecado original).

"Portanto,a Lei é boa, pois proíbe o que é preciso evitar e ordena o que se deve ordenar. Mas quando alguém pensa que a pode cumprir pelas próprias forças, não pela graça de seu Libertador, de nada lhe aproveita essa presunção; pelo contrário, prejudica-o tanto que é também arrastado por um mais veemente desejo de pecado..."(Explicação de algumas proposições da Carta aos Romanos).

"...O Pai, o Filho e o Espírito Santo perfazem uma unidade divina pela inseparável igualdade de uma única e mesma substância. Não são, portanto, três deuses, mas um só Deus..."( Sobre a Trindade).

"Sou teu servo, Senhor, teu servo e filho de tua serva. Quebraste-me as cadeias; vou oferecer-te um sacrifício de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e digam todos os meus ossos: "Quem é semelhante a ti, Senhor?" Que eles o digam. E tu responde-me e dize à minha alma: "Eu sou o teu Salvador". Quem sou eu? E como sou? Que malícia não houve nos meus atos! Ou, se não houve nos meus atos, existiu nas minhas palavras; ou, se não existiu nas minhas palavras, existiu na minha vontade! Mas tu, Senhor bom e misericordioso, com tua mão exploraste as profundezas de minha morte e purificaste o abismo de corrupção do meu espírito." (Confissões).

Bibliografia: Várias obras de Agostinho estão disponíveis em português. A coleção "Patrística", da Editora Paulus, possui alguns volumes com os escritos dele. Existem várias edições das Confissões, por preços bem acessíveis. Há também uma boa versão da Cidade de Deus publicada pela Editora Vozes. Entre outras obras publicadas por outras editoras, temos Sobre a mentira, As potencialidades da alma e Sobre o sermão do Senhor na montanha. O teólogo presbiteriano Franklin Ferreira compilou o livro "Agostinho de A a Z", no qual são elencadas citações do célebre bispo de Hipona separadas por assunto, em ordem alfabética.
BONUS: Para que gosta de cinema, uma boa dica é o filme "Santo Agostinho", que pode ser facilmente achado no YouTube.



segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Bernardo de Claraval



Hoje celebramos a memória de Bernardo de Claraval. Quem foi esse monge, que se tornou o homem mais influente da Europa em seu tempo?
Nascido em 1090 na cidade de Fontaines (França), Bernardo era filho de pais nobres. Aos 22 anos, ingressou na Ordem Cisterciense, tornando-se monge, juntamente com trinta parentes e amigos. Dotado de profunda inteligência, piedade e seriedade, após três anos foi enviado para formar um novo mosteiro, sob sua ordem. O novo mosteiro recebeu o nome de Clairvaux (traduzido em português como Claraval). A expansão de sua ordem foi uma constante na vida de Bernardo, que seria responsável pela abertura de dezenas e dezenas de mosteiros cistercienses por toda a Europa.
Devido a suas qualidades pessoais, Bernardo tornou-se cada vez mais respeitado e influente. Através de suas cartas (das quais nos restam mais de quinhentas), aconselhou governantes e autoridades eclesiásticas. Um de seus monges se tornaria papa, sob o nome de Eugênio III. Em matéria publicada há alguns anos na revista Superinteressante, Bernardo é chamado, utilizando-se a gíria popular, de "trator".
Um dos primeiros problemas enfrentados por Bernardo em sua carreira eclesiástica foi o cisma pelo qual a Igreja romana passava na época. Havia dois papas rivais. Considerando Inocêncio II como o legítimo, contribuiu para a vitória deste. Posteriormente, Bernardo envolver-se-ia em polêmicas com o teólogo Pedro Abelardo (um racionalista de tendências heréticas e vida moral duvidosa). Conseguiu que seu adversário fosse condenado num sínodo. Também combateu heresias que se disseminavam pela Europa ocidental
Apesar de enfatizar o amor divino em suas pregações (o teólogo quacre Richard Foster chega a dizer que, depois do apóstolo João, ele foi quem mais deu ênfase ao amor de Deus), Bernardo cria que, por vezes, os cristãos deveriam pegar em armas para defender a justiça e a fé. Assim sendo, ao saber que o Condado de Edessa, estado cristão na Síria, caíra frente às tropas muçulmanas, começou a pregar a II Cruzada. Os reis da França e do Sacro Império responderiam ao chamado, mas a Cruzada foi em vão, terminando com a derrota dos cristãos, o que foi um grande golpe na vida de Bernardo. Foi ele também quem convenceu o papa a criar uma ordem de monges guerreiros, os templários.
Chamado por alguns papas de "o último dos Pais da Igreja", Bernardo deixou um rico legado literário e espiritual. Entre suas principais obras, estão o livro" Tratado sobre o Amor de Deus", uma biografia de S. Malaquias, um elogio à ordem templária e um tratado aconselhando Eugênio III. Ficou famoso também por seus sermões, dos quais nos restam mais de duzentos, especialmente aqueles que comentam o livro de Cântico dos Cânticos. Além do amor, outras ênfases em sua teologia foram: a expiação através de Cristo e o papel da Virgem Maria na vida cristã. Influenciou a doutrina da "sola fide", que os reformadores protestantes sistematizariam séculos depois. Também foi um poeta sacro, sendo atribuída à sua lavra a autoria dos hinos Salve, Caput Cruentatum, e Jesu dulcis memmoria. Deu ênfase à lectio divina, leitura das Escrituras acompanhada de oração e meditação.
Bernardo faleceu em 1153, cercado de seus fiéis discípulos. Posteriormente, foi canonizado e declarado Doutor pela Igreja de Roma. Também recebeu o título de doutor melífluo (aquele que exala mel) devido a sua ênfase no amor. Era uma das figuras da Igreja mais admiradas pelo reformador Martinho Lutero, e foi citado muitas vezes por João Calvino.

Vejamos alguns textos de Bernardo de Claraval:

"Queres então saber de mim por qual motivo e em que medida devemos amar a Deus? Bem, digo que o motivo de nosso amor por Deus é o próprio Deus, e que a medida desse amor é amar sem medida" (Tratado sobre o Amor de Deus).

"Eis agora a paz, não já prometida, mas enviada; não diferida, mas dada; não profetizada, mas apresentada. Eis que Deus Pai enviou à terra como que um tesouro cheio de misericórdia, um tesouro cujo recipiente a paixão há de quebrar, deixando espalhar-se o preço da nossa salvação que nele se guarda" (Sermão Na Epifania do Senhor)

"Com muita razão o Menino  que nos nasceu recebeu o nome de Salvador quando foi circuncidado, porque já desde então começou a operar a nossa salvação, derramando o seu sangue puríssimo. Já não é necessário que um cristão se pergunte  por que Nosso Senhor Jesus Cristo quis ser circuncidado. Foi circuncidado pela mesma razão pela qual nasceu e pela qual sofreu: não foi por Ele, mas pelos escolhidos que fez tudo isso." (Sermão dos Nomes do Senhor).

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

15 de Agosto - Comemoração de Maria, mãe de nosso Senhor



Hoje, os católicos romanos celebram a Assunção de Maria. Segundo sua teologia, exibida no Catecismo da Igreja Católica, ela teria sido elevada aos céus em corpo e alma, não passando pela morte. Tal doutrina foi proclamada como dogma pelo papa Pio XII na bula Munificentissimus Deus, de 1950 .Os protestantes defendem que a mãe do Senhor passou pela morte. Tal doutrina também é apregoada pelos ortodoxos (que, no entanto, creem que seu corpo foi assunto aos céus antes que experimentasse a corrupção, assim como ocorreu com Jesus) As tradições protestantes que usam o calendário litúrgico reservaram o dia de hoje para relembrar Maria em aspectos gerais. Vejamos a beleza do testemunho da Virgem bendita, e como ela é um exemplo para todos aqueles que querem seguir fielmente o seu Filho Jesus Cristo.

Maria era uma moça piedosa. A graça divina a enchia (Lc 1.28). Por isso, foi escolhida entre tantas para ser a mãe do Filho de Deus.

Maria era obediente. Mesmo sem conhecer totalmente todas as consequências do grande plano que Deus tinha para a sua vida, entregou-se de corpo e alma (Lc 1.38). Como ela, todos nós devemos dizer: “Eis me aqui, faça-se em mim a vontade do Senhor”.

Maria nos mostra que a vida com Deus trará alegrias e vitórias. Quando o menino João Batista, ainda no ventre de sua mãe, salta de contentamento ao ouvir a saudação, Maria profetiza, pelo Espírito Santo, e se alegra em saber que Deus iria visitar o povo eleito, que havia chegado o tempo de exaltação de uns, e humilhação de outros, de modo que só o Criador soberano e Senhor da História poderia fazer (Lc 1.42-55). Ela soube que seria o perfeito arquétipo da maternidade, e que seu nome seria proclamado com exaltação por todo o povo eleito através dos séculos.
Maria é um exemplo de meditação e ponderação. Ao ouvir muitas coisas dos pastores, ela guardou-as em seu coração, meditando (Lc 2.19). Ao ouvir palavras misteriosas de seu Filho, ela guardou-as em seu coração (Lc 2.51). Não era uma mulher tola, que “tinha resposta para tudo” (Pv 29.11), mas com sabedoria e discrição, enveredava-se pelo longo caminho que deveria percorrer.
Maria nos mostra que todo aquele que quer servir ao Senhor há de sofrer. O caminho do peregrino é cercado de espinhos, e Maria o experimentou muitas vezes. Recebeu cruel profecia (Lc 2.35), teve de fugir de sua terra e de sua gente, refugiando-se entre um povo idólatra (Mt 2.13-15) Experimentou a dor de pensar o que teria acontecido com seu Filho adolescente, durante três fatídicos dias (Lc 2.45-46). Mas nenhum de seus sofrimentos comparou-se àquele que ela, em sua idade madura, iria experimentar. Seu tão amado Filho, sendo oferecido em sacrifício para a remissão dos pecados da humanidade. Ela estava lá, e não o abandonou no terrível espetáculo da cruz (Jo 19.25). O que teria ela pensado e sentido, quem poderá entender? Afora sua aguda dor de mãe, ela recebia um golpe violento em sua fé. Era esse o fim d’Aquele que exaltava os humildes e humilhava os soberbos? Que estranha forma de salvar a humanidade!

Por fim, Maria nos mostra a perseverança dos escolhidos do Senhor.

“Não temas, ó mãe abençoada, na sexta-feira, sofreste horrivelmente, e pareceu que tudo havia acabado. Ouve agora, ao terceiro dia: Teu Filho ressurgiu! A morte não poderia prender àquele que é o Rei da vida. Sim, Maria, Ele foi retirado de ti, mas ascenderá aos céus, vindicado e soberano. A obra está consumada, e um dia participarás com Ele das glórias do paraíso”.

Seu Filho havia subido aos céus (At 1.11). Maria havia compreendido de forma definitiva: os planos de Deus nunca falham. Mãe vitoriosa e abençoada, ela estava com as primícias da Igreja no cenáculo, onde recebeu a promessa do Espírito (At 1.14). E ao mesmo Espírito aprouve, através das Escrituras, mostrá-la pela última vez, dessa maneira: vitoriosa e perseverante.

Lembremo-nos do exemplo sublime da Virgem Mãe, a quem todas as gerações chamam de bendita. Ela é a grande representante da semente piedosa (Ap 12) que se sucedia desde que Eva havia se arrependido de seu pecado (que havia introduzido o mal na raça humana). Ela é a nova Eva (conforme foi chamada por Irineu de Lião), pois se, pela primeira, o Inimigo convencera Adão a pecar, por Maria veio aquele que reverteria o caminho do primeiro Adão. Maria foi um vaso de honra, um exemplo de santidade, e a mais exaltada das criaturas da Santíssima Trindade. Que possamos seguir o seu sábio conselho, de fazer tudo aquilo que seu Filho mandar (Jo 2.5), e confiarmos, como ela, que a salvação é obra da graça divina (Lc 1.47), a fim de podermos herdar com ela e com todos os santos, a vida eterna.

“Na economia da salvação,
Foste maior que os querubins
Em teu seio virginal
Nasceu quem salva a mim

Com honras nós nos lembramos
De ti, Maria, escolhida.
Por Ti o nosso Senhor
Veio à terrena vida

Louvemos ao Deus de Maria
E ao seu Filho, bom Jesus
E a quem, com sua sombra
Cobriu-a, Deus de luz.”


APÊNDICE: Giovani, o título “Mãe de Deus”, aplicado a Maria pelos católicos romanos, é correto?

Esse é um dos mais antigos dogmas marianos da Igreja Romana. Mas também é aceito pelos cristãos ortodoxos e por vários grupos protestantes. Declarado no Concílio de Éfeso (431), o III Concílio ecumênico, teve como objetivo a apologia da doutrina bíblica sobre as duas naturezas de Cristo e a relação entre elas. Maria é corretamente chamada de "Theotokos", que significa "portadora de Deus", título traduzido para o latim como "mater Dei"(mãe de Deus), forma que usamos hoje no Ocidente.

O objetivo desse título não foi a adoração de Maria, conforme afirmam alguns textos apologéticos evangélicos, mas a defesa da doutrina da União Hipostática, ou seja, que na pessoa de Jesus Cristo permanecem unidas inseparavelmente e sem confusão as naturezas divina (o Logos eterno de Deus) e a humana (constando de corpo e alma racional).

O título existia desde o tempo de Orígenes, sendo defendido amplamente pelos Pais da Igreja. O Concílio foi convocado porque Nestório, arcebispo de Constantinopla, afirmava que em Cristo subsistiam não duas naturezas, mas mesmo duas pessoas. Assim sendo, seria possível separar nosso Salvador e dizer que Maria era apenas a "Christothokos" (mãe apenas da natureza humana de Cristo). Cirilo, arcebispo de Alexandria, passou a atacar o colega, dizendo que sua doutrina contrariava as Escrituras e a Tradição da Igreja. Para ele, era necessário, mais do que nunca, defender o título "Mãe de Deus", e assim preservar a perfeita unidade de Jesus. O concílio foi convocado, e Cirilo saiu vitorioso. Conseguiu que Nestório fosse deposto, excomungado e banido do Império Bizantino. Os seguidores de Nestório, que floresceram na Pérsia e na Ásia Central por séculos, ficaram conhecidos como nestorianos, chegando a evangelizar a China em plena Idade Média. Mas, hoje em dia, são muito poucos. O Concílio de Calcedônia (451) confirmou o título mariano, que tornou-se dogma de fé incontestável nas Igrejas oficiais.

Os grandes reformadores (como Lutero, Calvino e Zuinglio) defenderam a maternidade divina de Maria. Os documentos confessionais da Igreja Luterana o afirmam claramente.

Vamos usar uma comparação: Isaque é filho de Abraão e Sara. Sabemos, pela biologia atual, que ele herdou parte de seu material genético de seu pai, e parte de sua mãe. No entanto, Abraão é, verdadeiramente, o pai de Isaque, e não o "pai da parte de Isaque que veio dele". Sara, verdadeiramente, é mãe de Isaque, e não a "mãe da parte de Isaque que veio dela". Pois em Isaque as heranças genéticas dos dois estão indissoluvelmente unidas, de modo que Isaque é um só. Assim, na pessoa de Jesus Cristo, as duas naturezas estão indissoluvelmente unidas, e sendo Ele verdadeiro Deus e verdadeiro homem, sua mãe pode verdadeiramente ser chamada de "Mãe de Deus". Por isso, caro leitor, que os Pais da Igreja, os teólogos medievais, os reformadores e eu defendemos o uso do título "Mãe de Deus" para Maria.


sábado, 11 de agosto de 2018

Cátaros, albigenses... Servos de Deus ou hereges?


Hereges cátaros são expulsos de uma cidade
Pessoal, o objetivo dessa postagem é refutar um mito ridículo que circula entre os evangélicos, no que diz respeito á História da Igreja. Sabemos que muitos evangélicos odeiam a Igreja Católica Romana, insistindo em que nada pode sair de bom dela. Então, ao serem indagados onde estavam antes da Reforma, não podendo admitir que havia salvação na Igreja medieval, inventam uma suposta sucessão de igrejas fiéis, da época de João Batista até o dia de hoje. Tal teoria é conhecida como “teoria do rastro de sangue”, e foi criada por um pastor batista. Um dos supostos grupos fiéis, que floresceu nos séculos XI-XIII, seria o dos cátaros (ou albigenses). Mas uma pesquisa acurada em obras históricas, teológicas e de referência derruba esse mito. Os cátaros eram, na verdade, hereges dualistas e gnósticos, que afirmavam a malignidade da matéria, a existência de dois deuses e a reencarnação. Vejamos o que muitas obras afirmam sobre eles:

“Eis o movimento cátaro, que não deve ser visto tanto como uma heresia, mas como uma renovação religiosa, já que está baseado no dualismo pagão do Antigo Oriente, talvez até pré-cristão(...) uma religião que via o corpo e todo o mundo material como uma criação de Satanás, que condenava o casamento e os filhos como essencialmente pecaminosos(...) Os maniqueus, o que funda mentalmente eram os cátaros, eram vistos tanto por pagãos quanto por cristãos como inimigos da raça humana.” (DAWSON, Cristopher. In: A Formação da Cristandade. É Realizações). 

 "A doutrina dos cátaros baseava-se em um dualismo que afirmava a existência de dois princípios: o do Bem, criador do mundo espiritual, e o do Mal, criador do mundo material"(Grande Enciclopédia Larousse Cultural. Ed. Nova Cultural).


"(...) os cátaros (na França, albigenses), ligados e talvez até derivados dos "paulicianos" e dos "bogomilos"(...). Reencarnações do antigo maniqueísmo, do dualismo mais extremado entre o bem e o mal(...)(PIERINI               , Francisco. In: A idade média- Curso de História da Igreja.Ed. Paulus).

  "ALBIGENSES. Uma seita dualista, também conhecida como "cátaros" ou os "puros", que tem possíveis conexões com o maniqueísmo.(...)"(GONZÁLEZ, Justo In: Breve Dicionário de Teologia. Ed. Hagnos). 

 "O albigensianismo, seita medieval dualista, é o derradeiro herdeiro do ensinamento maniqueísta(...) Eles ensinavam que havia um deus de luz (espírito) e um deus de trevas (matéria)...Eles também repudiavam o ensino ortodoxo a respeito de Cristo porque não acreditavam que o Filho de Deus pudesse encarnar como homem."(In: Novo Dicionário de Teologia. Ed. Hagnos).

 “Os cátaros distinguiam-se das seitas desse período pelo caráter dualista de sua doutrina.“Dualismo, nesse sentido, significa a crença de que a bondade existe somente no mundo espiritual do deus bom e que o mundo material é mau e foi criado por um deus mal ou espírito chamado Satã. (FALBEL, Nachman. In: Heresias Medievais. Ed. Perspectiva). 

 “Heresia maniquéia dos séculos XI-XIII que afirma a existência de dois princípios eterno, o bem e o mal, em luta no mundo. Do primeiro procede o mundo invisível dos espíritos e do segundo a matéria.” (Dicionário Cultural do Cristianismo. Ed. Loyola).

 “Mas os cátaros e seus oponentes católicos concordavamem uma única conclusão, mesmo que concordassem em muito pouca coisa mais: que a doutrina dos cátaros foi mais contundente em sua divergência com a ortodoxia católica, até mesmo mais do que os mais radicais dos ataques contra a igreja e suas estruturas, penetrando no próprio cerne do monoteísmo católico, incluindo as doutrinas da Trindade e da pessoa de Cristo.
 “Tanto a literatura confessional dos próprios cátaros quanto os escritos dos católicos contra eles indentificavam a percepção dualista de Deus como o principal dogma deles. “Eles dizem que existem dois deuses” (Ebr. Antihaer.5)” (PELIKAN, Jaroslav. In:Tradição Cristã: O desenvolvimento da Teologia Medieval. Shedd Publicações.) 
 

“Algumas variedades de heresia eram comuns nestas áreas, especialmente o dualismo (catarismo), cujos seguidores pertenciam à escola de pensamento dos antigos gnósticos e maniqueus. “ (CHADWICK, Henry e EVANS, G.R. In: Igreja Cristã. Ed. Folio)

  “Os cátaros (“os puros”) eram conhecidos na França como albigenses, da cidade de Albi, no Languedoque, um centro de sua força. Eles continuaram o dualismo que chegou aos maniqueístas (os cátaros regularmente eram chamados de “maniqueístas”) e foi transmitido à Europa pelos bogomilos (...)”
 “(...) De acordo com o dualismo do espírito e matéria, os cátaros condenaram a carne e a criação material como algo mal.” (FERGUSON, Everett. In: História da Igreja: Dos dias de Cristo à Pré-Reforma. Ed. Central Gospel.)
 

 “Os albigenses asseveravam a co-existência de dois princípios mutuamente opostos, um bom, e o outro mal. O primeiro é o criador do mundo espiritual, e o segundo do mundo material. O principio mal é a fonte de toda malignidade; fenômenos naturais, tanto os ordinários como o crescimento das plantas, ou extraordinários como terremotos, assim como desordens morais (guerra), devem ser atribuídos a ele.” (Catholic Encyclopedia)

 “Os cátaros professavam um dualismo neo-maniqueu – existiam dois princípios, um bom e o outro mal, e o mundo material é mal. Similares visões foram sustentadas nos Balcãs e no Oriente Médio pelas seitas religiosas medievais dos paulicianos e dos bogomilos.”“(...) todos eles concordavam que a matéria é má.” (Encyclopaedia Britannica). 

 DEPOIS DISSO, SÓ POSSO DIZER: