“A DOMINO FACTUM EST
ISTUD, ET EST MIRABILE IN OCULIS NOSTRIS.”
(Isto foi feito pelo
Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos – Salmo 118.23)
Escrevo em
tributo de gratidão ao Deus Trino, que me regenerou, por seu Espírito, nas
águas do Santo Batismo, libertando-me da morte, do inferno, do diabo e de minha
própria vontade — a qual estava presa no pecado original. Que o Senhor do
Universo receba o meu propósito de anunciar as suas bênçãos e a sua
misericórdia sobre a minha vida, em um “cântico novo”. Que diante da Igreja de
Deus sejam recebidas as minhas palavras. Sou o menor de seus filhos, indigno de
ser contado em seu seio.
Sou
grato ao meu Salvador, o único que esteve comigo em todos os momentos da minha
vida. O Deus crucificado. Aquele que foi coroado de espinhos, enquanto honramos
e ambicionamos o poder mundano. Que recebeu cuspidelas e bofetadas, enquanto
temos prazer em infringi-las ao nosso próximo. Que nunca cometeu pecados, a fim
de que os pecadores fossem resgatados.
Sabemos que um
sacerdote interesseiro o declarou culpado — e apoiamos qualquer pastor/padre
interesseiro, por simplesmente defender “ordem” e os “bons costumes”. Sabemos que
um político fraco e relapso o condenou a morte por instigação popular — e ainda
dizemos que “a voz do povo, é a voz de Deus”. Ele intercedeu pelos homens
profanos e pelos seus discípulos; pelos religiosos hipócritas e pela proscrita
de grande fé; pelos líderes judeus corruptos e pelo piedoso centurião pagão; pelas
seguidoras devotas e pelas prostitutas. Nós intercedemos apenas por alguns
grupos. Grupos estes que variam de acordo com nossos interesses, ou até mesmo
com o nosso humor. Para nós, há classes e classes de homens. Alguns seriam
dignos do amor divino - outros, não. Comumente, jogamos pessoas específicas de
um grupo para o outro, como quem joga, de um cesto para outro, uma bolinha de
papel amassado. Muitas vezes, desejamos que Deus seja conivente com os nossos
pecados — mas que seja um juiz severo com o pecado do próximo. Que acoberte
nossos crimes — mas condene os erros de nosso irmão! Que Ele nos leve para o
céu, apesar da trave em nosso olho. Mas condene o outro ao inferno, devido ao
cisco em seu olho.
Próximo à
virada deste ano, quando eu — que reúno os pecados dos corruptos, dos fracos,
dos relapsos, dos profanos, dos hipócritas, dos pagãos, e das prostitutas —
jazia no chão do meu quarto, urrando de dor, seminu devido ao calor abrasante,
lançando jorros de poesia dionisíaca. Quando eu blasfemava, cego pelo ódio,
tendo como único credo e fé a vingança contra um mundo hostil, esmagado pelo
peso dos meus pecados e do meu remorso. Quando havia sido abandonado por muitos
falsos amigos, vendo as causas e pautas ideológicas que apoiara revelando a sua
face trevosa por trás da máscara, e o meu mundo caindo nas sombras. Quando eu,
sentindo meu próprio mau cheiro atirei a Bíblia no chão, cogitando o suicídio
(e algum homicídio, talvez) não foi o “Jesus da arminha”, nem o “Jesus
marxista” quem me resgatou. Não foi o “Jesus milagreiro” ou o “Jesus hippie”
quem me iluminou. Não foi o “Jesus trans” ou o “Jesus politicamente correto”
quem estendeu a mão para mim. Não foi o “Jesus ariano” nem o “Jesus palestino”
quem teve compaixão de mim. Não foi nenhum Jesus de nicho. Muito menos um dos
muitos “jesuses” feitos à imagem e semelhança de nosso pecado. Mas foi o Jesus
onipotente humilhado na cruz. Foi o Jesus temível que perdoa por graça. O Jesus
Divino e Humano. O Jesus que está à destra do Pai, e na pequena hóstia do
altar. O Jesus que é tudo em todos. O Jesus que acolhe e transforma. O Jesus
único e sublime, que não rejeita ninguém. O Jesus que trata conosco pela Lei e
pelo Evangelho. O Jesus que aparecerá novamente para glorificar os pecadores
contritos – e julgar com rigor os pecadores impenitentes. O Jesus que é pedra
de tropeço, posto como sinal de contradição. Para alguns, Ele é firme
fundamento de salvação. Para outros, ele é motivo de escândalo, despedaçando-os
e reduzindo-os à pó.
Era como se,
naquele momento, a terra se abrisse e o inferno ardesse sob meus pés. Como seu
visse e sentisse apenas chamas, vermes, enxofre, escuridão e espectros
esquálidos. Mas então, em minha mente, surgiu impressa fortemente a imagem do
Cristo, do seu rosto esvaecido, seus cabelos ensanguentados, sua boca cerrada,
a palidez mortal em sua face sagrada. Seus olhos estáticos, porém mais
profundos que o firmamento. Suas chagas abertas e horríveis, seu sangue
abundante, o odor nauseante de seus ferimentos, suas carnes querendo saltar
pelos vergões. Suas mãos atravessadas, pregadas ao lenho cruento. Ah, o
horrível espetáculo do Gólgota! Era como se ele me lembrasse, novamente, com
toda ternura “-Sou o teu Salvador!”.
Quero ressaltar que não tive nenhuma “visão extática”, nem “ouvi vozes”. Estava
plenamente consciente, e apenas tive tais pensamentos de maneira brusca,
repentina, vigorosa e detalhada na mente.
Decidi que não
poderia por fim a minha vida, ou me entregar ao mal. Tudo já havia sido feito
para mim, há dois mil anos. E eu já fora selado na promessa. “Baptizatus sum (Sou batizado)!”. Uma chance havia sido dada a mim. Foi Deus, e não
o homem, quem a deu. Mas a culpa torturava meu coração miserável. “O que devo fazer, Senhor?”.
Procurei
então o P. Alberi Neumann, da Paróquia Luterana do ABCD (em Santo André-SP) e
conversamos longamente. Derramei minhas lágrimas, minha tão grande culpa,
minhas frustrações, remorsos, meus projetos de vingança, minha impotência,
minha vileza. Ele não me julgou pior do que qualquer outro. Acolheu-me, pecador
e indigno como era, dando-me conselhos e fazendo-me questionar a mim mesmo. Mas
propôs-me, para meu bem, que fizesse a maior renúncia de minha vida.
Pode ser fácil
renunciar a posses, hábitos, gostos e glórias. Mas aniquilar suas principais
características, que te fazem sentir “poderoso”, “por cima”, “ameaçador”, é
dificílimo. Na linguagem evangélica, é “cortar a própria mão para entrar no
Reino do Céu”. Eu deveria abdicar de minha vingança, práticas de manipulação,
ódio, soberba, preconceito e autossuficiência (ele não usou tais palavras, mas
eu gosto de usá-las). Deveria deixar os ardis. Eu disse que tentaria. Um homem,
sem a graça divina pode se submeter a severos castigos e privações, quando os
impõe a si mesmo. Surrar o próprio corpo até sangrar, viver em jejum e
abstinência, adotar rígida disciplina de atividade religiosa, se refugiar no
topo de uma montanha, seguir à risca regras rígidas em relação a vestimentas e
passatempos, dar a vida por uma causa filosófica ou humanitária. Ainda assim,
não renuncia ao seu ego, pois tem em suas mãos o controle de sua “vida santa”,
e a ideia de que é justo e bom. Supremo engano! Se não for pela graça divina,
nenhum mortal é minimamente capaz de domar a sua velha natureza, ou de se
submeter filialmente àquilo que não está sob seu controle. Sem qualquer mérito
de minha parte, Deus me chamara pelo nome, no santo batismo, que recebi aos
treze anos. Durante esses anos, me dera graça através de sua Palavra e da eucaristia,
não permitindo que eu me perdesse, apesar das minhas transgressões. Foi por tal
graça que consegui, no momento extremo, retornar à plenitude da promessa que
recebera.
Aqui vai uma
pequena explicação ao leitor. Porque, na tentativa de buscar um caminho,
procurei justamente o P. Alberi? Porque me lembrei dos conselhos e do exemplo
de seu antecessor naquela paróquia, que eu visitara algumas vezes, durante
anos. Desejo prestar aqui a minha homenagem ao saudoso P. Carlos Musskopf, um
verdadeiro “Bispo Benvindo de Digne”
em minha vida. Fui ingrato e um tanto surdo aos seus sábios conselhos. Naquela
época, embora amasse a liturgia luterana, apreciasse o papel social da IECLB e me
relacionasse bem com os paroquianos, algo muito cruel me impedia de uma maior
aproximação. Simultaneamente vítima e vilão, atormentado pelos meus
preconceitos, soberba e medo, tremia diante de duas coisas.
A primeira
delas, era a possibilidade de participar da mesa do Senhor junto a um irmão ou
irmã LGBT. Pensava que seria punido por Deus, ao comungar com “pecadores tão
profanos”, da “mais vil estirpe”. Eu não considerava o “homossexualismo” como
um “pecado comum”. Por pecado comum, eu entendia coisas como mentira, soberba,
ira, glutonaria. Para mim, tratava-se de um dos “pecados mais graves”. Em um
estranho bloqueio mental, fugia de quaisquer estudos ou exegese bíblica que
mudassem minimamente tal percepção. Por anos, eu havia sido envenenado com tais
ideias, por pessoas que se diziam “justas e boas”, defensoras da “ortodoxia
cristã” e da “moral bíblica”. As mesmas pessoas que, durante a pandemia da
COVID-19, não foram capazes de demonstrar o mínimo interesse para com a vida
humana e para com a santidade do nome de Cristo. Pessoas às quais eu poderia
aplicar um verso de um hino: “Vi quem
dizia ser crente/ perder de repente/
os valores morais”.
Outro
impedimento era o posicionamento político que transparecia na maioria dos
paroquianos com quem eu me relacionava, por ser bem diferente do meu. Em nenhum
momento me constrangiam a respeito disso. Apenas me alertavam quanto aos riscos
dos excessos. Mas a raiva gratuita não suporta a justa paz ponderada. Por isso
tudo, eu era torturado como Tântalo — a famosa personagem da mitologia grega,
condenada a passar fome e sede, enquanto tinha diante de si um lago cristalino
e belas árvores frutíferas.
Permitam-me um
interlúdio, com algumas recordações. Acabei protagonizando cenas lamentáveis,
em parte pela doença, em parte pela minha visão de mundo, durante os longos
anos nos quais estive assentado nas trevas e na sombra da morte. Necessitava
desesperadamente de amizades. Em uma ocasião, enraivecido com um amigo, furei
minhas duas mãos com uma faca. Para dizer a verdade, por pouco não as
atravessei. Lembro-me até hoje da cena. Eu, sentado no chão da sala, recolhendo
o sangue que escorria pelo chão, e esfregando-o na face, em estupor. Minha mãe
chorava em desespero. Meu pai tinha uma crise de asma. Vieram a polícia, a ambulância
e nossos vizinhos — amigos muito queridos — para nos ajudar.
Muitas outras
cenas poderiam ser recordadas. Posso lembrar, como se fosse ontem de minha
figura, andando de um lado para o outro, segurando uma cruz na mão, de maneira
supersticiosa, chamando atenção de todos, na sala de espera da consulta
psiquiátrica. Lembro-me do modo que levantei, furioso, ao ter as minhas crenças
“contestadas” por um jovem médico. Gritei com ele, dizendo que não toleraria
“blasfêmias”. Saí do consultório, de maneira ruidosa e descontrolada. Todos
foram atrás. Quando minha mãe tentou conversar comigo, no meio da sala de
espera, eu lhe dei uma tapa, seco e repentino, na frente de todos. Ainda
ameacei o médico, dizendo que, caso pudesse, cortaria a sua língua. Lembro-me
dos dias em que estive internado na enfermaria psiquiátrica do Hospital
Municipal. Um senhor de certa idade, que também estava lá, andava pelo espaço
durante a noite, pegando comida no lixo
e levando para mim. Havia um homem, cuja mente estava tão turbada, que apenas
grunhia quando questionado. Separada por uma tênue divisória, estava a ala
feminina. Uma senhora passou a noite inteira gritando, intercalando “Ave-marias” com palavrões diversos.
Poderia
descrever muitos outros tormentos, durante os doze anos em que corri atrás do
vento, seguindo as paixões carnais da soberba, da inveja e da idolatria. Perdi
a saúde física, a saúde mental, amigos, tempo, dinheiro, oportunidades, o
início de uma brilhante carreira acadêmica, a adolescência e parte da
juventude.
Em meio a
tantas lembranças de dias escuros, porém, recordo-me perfeitamente de quando o
P. Carlos me deu sua bênção, fazendo sobre mim o sinal da cruz do Senhor,
pedindo o “carinho de Deus” em minha vida. Lembro quando, após meses sem
conversarmos, devido a minha irritação por receber uma ponderada repreensão, eu
visitei a Paróquia do ABCD com um amigo. Quando me viu, o P. Carlos me recebeu com
uns “quebra-costelas” (como dizia), acompanhado da exclamação: “-Meu guri!”. Lembro-me de nossa última
conversa, pelas redes sociais, pouco antes dele terminar sua carreira nesta
vida. Havendo me afastado novamente, por receber uma segunda repreensão (a qual
havia sido motivada por uma declaração bem mais grave) iniciei uma conversa
pelas redes sociais. Ele ficou contente em conversar comigo, e expressou sua
confiança em mim apesar de toda a minha impetuosidade. Não posso saber
exatamente o que se passava em sua mente. Talvez, percebesse em mim zelo e
sinceridade. Que no tempo certo, eu perceberia minha incoerência, e poderia
desenvolver um grande potencial. Que eu
tinha “boas intenções“. Alguns poderiam dizer: “pessoas como o Giovani NUNCA
mudam”. Nunca ouvi ou senti isso dele.
Hoje, pela
graça de Deus, sou o que sou. Estou reconstruindo minha vida. Sempre fui
cristão: ora legalista, ora devoto, ora cético, ora dado á êxtases e arroubos.
Ora em paz, ora em guerra. Ora feliz, ora triste. No entanto, há muito tempo
uma sombra me acompanhava. A sombra de um ídolo que disputava com Deus a posse
do meu coração.
Lembro-me também
que, certa vez, ao me entregar o Santo Sacramento do Altar, molhando ele
próprio a Hóstia Consagrada no Cálice (devido aos constantes tremores de minhas
mãos) e entregando-me, o Carlos disse
“derramado POR TI”, e não pelo genérico “por vós “. Como um dourado e
agudo dardo de amor, que penetrou em meu coração, eu nunca esqueci aquelas
palavras. Eu já ‘sabia’ que Cristo me amava mais do que todos. Mas ouvir
aquelas palavras, daquela maneira, naquele momento tão sagrado, foi uma das
coisas mais sublimes que me ocorreram na vida. Embora não fosse luterano, desde
minha iniciação religiosa, em outra vertente protestante, possuía grandíssima
reverência e amor à eucaristia.
Recordo-me
também que as palavras dele soavam como “sinal de contradição”. Assim deveriam
ser as palavras de todos os discípulos de Jesus. Quando eu apontei o dedo para
os “pecadores”, ele disse que era um deles. Quantos pastores, em nossos dias,
tem coragem para fazer tal afirmação? Uma afirmação tão básica, sem a qual
nenhum de nós poderia se considerar cristão!
Esmagado pelo
peso de minha tristeza, com a aparência pálida e abatida, possuindo um “jeito
estranho”, quase sem amigos, correndo de psicólogo em psicólogo, de psiquiatra
em psiquiatra, irritado com diversas formas de hipocrisia que via nas igrejas,
muitas vezes queria cometer suicídio. Quando alguns irmãos da tradição
religiosa na qual fui criado me ameaçavam com o inferno, a vontade aumentava
ainda mais. Declarações assim faziam-me odiar este “deus”. Eu queria cuspir em
sua face. O Carlos tinha uma mensagem diferente: “Não faça isso. Ainda precisamos muito de você!”.
Haviam me dito
que muita coisa era “pecado”. Os “pecados” eram “pecados” por que os líderes
assim diziam. E ponto final. Havia, praticamente, listas de pecados, baseadas
em critérios fundamentalistas e literalistas. Aliás, nem tanto. Alguns eram
frutos de “exegeses” bíblicas tão distorcidas, que não podem ser encaixadas em
nenhum método oficial. Usar barba, ouvir rock, jogar RPG, jogar futebol,
participar de festas juninas, ir ao cinema, ir a praia, usar bermudas, consumir álcool (socialmente), questionar ou
desobedecer os líderes, assistir filmes de terror, assistir certas emissoras de
TV, votar em certos partidos políticos. “Não
pode”, “é pecado”, “não é coisa de crente”, “cuidado para não perder a salvação” eram
algumas frases constantemente ouvidas. Mesmo que eu tenha deixado formas mais crassas de legalismo, abracei
outras, igualmente – ou até mais–perigosas: a necessidade da igreja dominar a
política, a violência em nome de Deus (pena de morte, tortura, “guerras
santas”), o ideal de “civilização cristã ocidental”. Pode parecer contraditório
dizer tal coisa, mas no fundo, eu não sentia prazer em ter tais pensamentos. Apalpava
em confusas trevas. Hoje, eu percebo o
quanto o pecado é mais comum, sutil, devastador e maligno do que eu havia
imaginado até então. E o quanto Deus é gracioso!
O Carlos tinha
convicções políticas e sociais diametralmente opostas às que eu nutria na
época. Nem por isso me desqualificava. Nem levava tais questões para o púlpito.
Não pedia votos, não exigia castigos divinos sobre quem pensava diferente. Ele
pregava a Palavra de Deus, tal como ela é. Quando a necessidade o obrigava a
denunciar medidas e práticas perversas, o fazia de maneira equilibrada, justa e
certeira. Tentava conciliar as pessoas que possuíam posicionamentos diversos,
no que fosse possível. A semente que este homem plantou, desabrochou em mim
após anos. Por esta razão, fui buscar o seu sucessor para me aconselhar, como
já relatei acima. Buscando apenas a Cristo e seu perdão, sem querer mais nada,
encontrei muito do que buscara sem sucesso por anos, numa vida que havia sido,
a meu ver, “uma guerra perdida”.
Descobri, de
fato, o que é ser livre em Cristo. E o amor que provém de tal liberdade.
Melhorei significativamente de meu quadro depressivo. Tenho alegria e vontade
de viver. Sinto-me melhor no aspecto físico, mais saudável e vivo. Como é bom
assumir tarefas e compromissos! Como é bom cuidar da casa e ajudar os pais!
Retomei atividades culturais (como, por exemplo, assistir a um concerto no
teatro, após treze longos anos!). Faço coisas que antes não faria. Melhorei
meus hábitos alimentares. Passei a fazer atividades físicas. Arranjei muitos
amigos, como nunca em minha vida havia tido. Com a graça de Deus, tenho ajudado
várias pessoas, nas maneiras que me são possíveis. Tenho novos projetos e
objetivos a perseguir. Sinto prazer em arrumar minhas coisas. Desenvolvi
habilidades esmaecidas. Reencontrei pessoas do meu passado. Perdoei e fui perdoado.
Vários preconceitos ruíram. De uma maneira que só posso classificar como
sobrenatural, em curto espaço de tempo, eu recebi por vias naturais e sutis
inúmeras respostas, sinais e orientações, que buscara em vão por toda a vida. Como
Moisés no Sinai, fico trêmulo e espantado ao recordar. Só tenho a agradecer.
No entanto, a
paz de Cristo é o que mais surpreende. Derramei abundantes lágrimas de
contrição e dor – como quem chora o primogênito a quem transpassou– misturada
com indescritível alegria. Eu realmente NÃO cria que tais cenas, vistas em
filmes ou livros, ocorressem. Mas quando me vi, de joelhos, com as mãos
estendidas, chorando copiosamente – e, ao mesmo tempo rindo! – sentindo a graça divina inundar os meus
sentimentos e a minha mente, pude sentir Deus em cada aspecto, na alegria e na
dor. Pude amar a vida, mas estar pronto para deixá-la. Pude crer no amanhã.
Pude sentir, ao lado desta inefável alegria cristã, um pungente sofrimento e
angústia pelas dores do mundo. Ao longo deste ano, compadeci-me das vítimas da
pandemia, das famílias enlutadas, das
pessoas sem esperança, e daqueles que se desviaram do evangelho para seguir ao
seu ídolo político durante a quarentena. Aprendi, mesmo que imperfeitamente, a
perdoar. Por discordâncias ideológicas,
fui ofendido e humilhado por pessoas que outrora me admiravam. Mas como poderia
ter raiva, se eu recebi tão grande perdão? Em tempos anteriores, eu desejaria,
com vigor, a morte e desgraça de eminentes líderes políticos e religiosos (e de
meus desafetos a nível pessoal). Hoje em dia, com toda a paz no coração, oro
por tais pessoas, para que voltem a seguir exclusivamente a Cristo, lançando
fora os ídolos e falsos salvadores. Posso enfrentar o sofrimento com mais
resignação e perseverança. Pude saber que, embora eu vá errar ou retroceder
muitas vezes nesse caminho, sempre serei reconduzido e guardado. Não temo a
queda. Nada tenho a recear, enquanto olhar para a cruz.
Além dos já
citados pastores, desejo agradecer especialmente a todos os irmãos e irmãs da Paróquia do ABCD, da qual tenho participado ativamente. Pela primeira vez na vida, sinto-me
completamente bem em uma comunidade eclesiástica.
Agradeço ao
pessoal da JE (Juventude Evangélica) da IECLB, especialmente os do Sínodo
Sudeste, que me acolheu de braços abertos. Fiz ótimas amizades com pessoas do
grupo, cujas conversas por telefone e redes sociais – e ocasionais “escapadas”
por aí- foram um grande amparo para a
minha vida nesta quarentena. Menciono de
maneira especial o Fabio Lahass, cujas postagens em redes sociais, marcadas por
uma moral cristã autêntica e imparcial, conduziram-me a buscar proximidade com
o grupo.
Agradeço aos
irmãos e irmãs do coletivo “Inclusão
Luterana”, que me abraçaram na volta ao lar paterno, perdoando todas as
calúnias e desprezo que nutri contra eles por anos. Cuja fé, manifesta através
das obras e do testemunho, têm sido de grande ajuda. Por minha convicção
teológica, aclarada pela luz de Cristo vista em suas faces, abraço hoje esta
causa - embora ela não seja, a nível pessoal, “assunto meu”. Não sou gay,
poderia me abster de tal questão segundo a lógica do “menor esforço”. No entanto, não posso me
omitir diante do que o Evangelho me ensina e me constrange.
Entre os
irmãos de outras igrejas, agradeço especialmente ao seminarista Thiago Surian,
da Igreja Evangélica Luterana no Brasil (IELB), por me aconselhar a tentar
frequentar a IECLB, não obstante às diferenças de nossas igrejas quanto a
certas interpretações confessionais. Recomendou que eu convivesse um pouco com
a comunidade. Seus ensinamentos e exemplo, fluindo de maneira natural e
sincera, ajudaram-me a aprender a distinção entre Lei e Evangelho, e a lançar
fora do meu coração os trapos podres da idolatria ideológica. Embora adotemos
posições divergentes a respeito de diversos temas, vejo nele uma pessoa
coerente com a fé que professa, não se deixando levar por modismos, hipocrisia
ou parcialidades, mas contestando e discordando de maneira cristã e evangélica.
Talvez por ter passado experiências semelhantes às minhas, em certos aspectos.
Agradeço ao
meu amigo Rodrigo Ragio, cristão de linha batista, o qual conheci por meio da
Aliança Bíblica Universitária (ABUB). Ele me estimulou ao máximo no processo da
procura e decisão de frequentar uma comunidade de fé, quando eu havia perdido
toda a esperança em quaisquer formas de cristianismo organizado.
Agradeço aos
meus familiares e amigos, que me deram apoio. Agradeço especialmente aos meus
pais, dos quais estou orgulhoso, mais uma vez. Além do apoio dado, agiram de
maneira sábia e cristã nesses tempos difíceis, reconhecendo falhas do passado e
mudando certos posicionamentos, diante das evidências surgidas aos seus olhos.
Contra fatos, não há argumentos. Os atritos no lar diminuíram muito.
Permitam-me,
agora, um pequeno ato de orgulho eclesiástico. Neste processo de redescoberta,
foi a IECLB quem me acolheu. Ela tem problemas? Sim. Muitos. Mas mostre-me a
igreja que não os tem. Mesmo assim, ainda é uma das poucas denominações cristãs
no Brasil cujos fiéis podem se orgulhar. Vamos ponderar sobre nós, e esquecer
os outros. Aos grupos religiosos que agem e creem de maneira inadequada, cabe a
fala de Lutero à Zuinglio, no Colóquio de Marburgo: “não sou vosso juiz”.
Nossa
igreja, como organismo, agiu de maneira ética, caridosa e valorosa durante a
pandemia. Abrimos mão dos cultos presenciais a fim de impedir o avanço do
vírus. No geral, não nos envolvemos em escândalos ou mal-testemunho diante da
sociedade. Não promovemos jejuns vazios com meros propósitos políticos, mas
demonstramos verdadeira solidariedade. Nossos pastores nos orientaram a
carregar tal cruz com resignação, sem esbravejar ou se revoltar contra as
medidas das autoridades competentes. Desenvolvemos inúmeras programações,
propósitos e atividades online a fim de oferecer conforto ao próximo. A
Juventude Evangélica, em manifesto oficial, declarou-se a favor da anulação do
Exame Nacional do Ensino Médio(ENEM) em solidariedade aos jovens de classes
sociais desprivilegiadas, que seriam prejudicados. Mesmo que isso, para a maioria
de nossos jovens, implicasse em claro atraso, perda de tempo e recursos em suas
vidas pessoais, o espírito evangélico falou mais alto. Não nos alinhamos, como
Igreja, com posicionamentos e planos políticos. Não bajulamos governantes,
enquanto pessoas morriam aos milhares. Ninguém pode nos apontar o dedo com
“raiva justa”, pois não agimos como “capachos” ou como ferramenta de dominação
política.
Em nossas confissões de fé, reconhecemos
que fomos salvos por Cristo Jesus, na cruz, pela graça, mediante a fé somente.
Rebemos o Batismo, que realiza o perdão dos pecados, livra da morte e do diabo,
e dá a salvação eterna a todas as pessoas que creem no que dizem as palavras e
promessas de Deus, isto é, que Cristo é o nosso Salvador. Para sermos
salvos, não precisamos obedecer a um
código de vestimentas, pagar o dízimo ou abster-se da televisão, tendo o “medo
de ir para o inferno” como companheiro constante. Sabemos que recebemos os
reais Corpo e Sangue de Cristo no altar, e não um pão vil. Não nos iludimos em
dizer que recebemos a “benção da santificação completa” – mas também não nos
lançamos no desespero devido aos nossos pecados, em outro extremo. Sabemos que
somos “simultaneamente justos e pecadores”. Justamente, a gratidão e a
segurança oriundas da Trindade são o que nos impulsiona e fortalece na busca
pelo amor, pela paz , pela justiça, pela ética e pela vida comunitária.
Somos
ensinados a respeito da importância da dialética entre Lei e Evangelho, além da
necessidade da ponderação na interpretação do texto sagrado. Temos uma liturgia
embasada nas Escrituras e na tradição Cristã, com simbolismo rico e adequado;
pregações teologicamente fundamentadas; orações litúrgicas em comum e hinos
baseados em sólidos critérios bíblicos. Sem êxtases e frenesis, mas também sem
“fossilização”. Nossos pastores – que recebem ensino teológico e treinamento
sólidos – não costumam iludir pessoas
simples e humildes com promessas de prosperidade financeira e curas milagrosas
(“contanto que você pague primeiro”,
como diria o cantor Gilberto Gil), mas são designados para nos instruir na
Teologia da Cruz.
Enquanto
alguns creem num Jesus parcial e preconceituoso, que rejeita e abomina pessoas
por qualquer razão (geralmente, as mais injustas possíveis), lançando fora da
Igreja os “profanos”, nós temos buscado
acolher e incluir em nossas comunidades todos aqueles que querem se
achegar a Deus com fé e devoção sincera, sem lançar os que não se adequam a
certos padrões culturais. Nossa Igreja tem buscado, de maneira geral, prezar
pela ética, pelo bem do próximo e por ser “sal”
e “luz” na sociedade.
Hoje, posso
dizer com plena certeza: eu creio no poder de Deus. Não é um poder segundo os
critérios humanos, baseado em espetáculos, riqueza, brilho, coerção e
pirotecnia. É um poder bem maior e mais avassalador, que ribomba através da
fraqueza, da confissão, do arrependimento, do amor, do perdão, da partilha e da
cruz. Aqui estou. Não posso falar nem agir de maneira diferente. Não posso me
afastar da missão que me foi dada. Ai de mim, se não pregar o Evangelho! Quero
que todos sintam a alegria que eu senti. Glória a Deus nas alturas, paz na
terra, e boa vontade para com os homens!
Assinado: O maior dos pecadores, indigno de ser chamado
“Discípulo de Cristo”.