No meio evangélico
brasileiro, há uma grande confusão em relação a liturgia. Muitos veem a
liturgia tradicional de certas igrejas como um "resquício de
romanismo", "trapo imundo do papado". Devido a questões
sociológicas datadas do tempo do II Império Brasileiro, quando os protestantes
eram desprezados e amaldiçoados, a liturgia protestante no Brasil tende a ser
extremamente simples, e costuma-se condenar algumas práticas tradicionais em
outros países, como o uso da cruz, de orações recitadas, e de togas por parte
dos ministros. Mas eu, pessoalmente, creio que na liturgia cristã tradicional
temos uma grande riqueza teológica e espiritual que muito se adequa a um grupo
que pretende render culto àquele que é o Soberano Criador do céu e da terra, ao
Rei exaltado nas alturas, ao Senhor de todas as coisas (Hc 2.20). Não convém
oferecer a tal Ser a mesma coisa que ofereceríamos a um "Zé ninguém".
Em algumas denominações
cristãs do Brasil atual, temos experimentado um retorno a essas raízes
litúrgicas. Vários grupos tem descoberto a beleza das práticas tradicionais, e,
em alguns deles, unido a estas a teologia bíblica e os carismas pentecostais. É
o chamado "movimento de convergência".
A seguir, analisarei
alguns pontos dessa herança litúrgica que muitos têm redescoberto.
O CALENDÁRIO LITÚRGICO E
O LECIONÁRIO
Do mesmo modo que existe
um calendário civil em cada sociedade (no Brasil, por exemplo, temos os dias da
Independência, da bandeira, da proclamação da República, da consciência negra,
etc.), existe também, na tradição cristã, o calendário litúrgico. Tal
calendário, formado ao longo dos séculos, nos lembra dos grandes feitos de Deus
na obra da Redenção, especialmente através da vida e ministério de Jesus
Cristo. O calendário litúrgico se inicial com o Advento, período de preparação
e expectativa para o Natal, quando se celebra a encarnação de Cristo, e termina
com a festa de Cristo rei, onde nos l
embramos de que, apesar de tudo, nosso
Salvador é rei grande sobre a terra. Entre as outras datas comemoradas no
calendário litúrgico, temos também o Domingo de Ramos (que relembra a entrada
triunfal de Cristo em Jerusalém),a Sexta-feira Santa (que relembra a morte do
Senhor) a Páscoa (Sua ressurreição), o Domingo de Pentecostes (que relembra a
vinda do Espírito Santo sobre a sua Igreja). O calendário litúrgico nos
proporciona meditar sobre a história da salvação e aplicá-la em nossa vida.
Dessa maneira ao longo do ano o tema das leituras bíblicas, dos hinos, dos
sermões e do simbolismo abrange uma vasta gama de assuntos, o que também desfaz
a mesmice dos cultos de muitas das igrejas atuais (onde se fala só de bênçãos,
ou só prosperidade, ou só de costumes,etc.).
Com o calendário litúrgico também podemos compreender a doutrina bíblica “no
geral”.
O lecionário é um sistema
de leituras bíblicas ao longo do ano litúrgico que permite, em seu decorrer,
que a cabo de alguns anos a Bíblia inteira tenha sido lida publicamente na
Igreja! Geralmente, é utilizado o padrão de três ou quatro leituras por culto.
A CRUZ
A cruz é publicamente
relembrada como o símbolo máximo do Cristianismo. Se outrora simbolizava
maldição (Dt 21.23) , por ser utilizada como forma de condenação aos piores
criminosos das sociedades antigas, para nós passou a ser símbolo de glória,
redenção e vitória (Gl 6.14; I Co 1.18). Ela é a expressão máxima do amor de
Deus pela humanidade pecadora. Ora, se a Bíblia tantas vezes fala da cruz como
símbolo de redenção, e se os hinos que cantamos há gerações também o fazem
("Quero estar ao pé da cruz"; "Foi na cruz onde um dia eu
vi", "eu amo a mensagem da cruz",etc.) porque não podemos usar o
símbolo em nossos templos, vestimentas, como pingentes, ou em objetos?
Alguns costumam dizer:
"Na cruz, Jesus morreu. Por tanto, não devemos utilizar esse símbolo.
Pois, se o seu filho fosse assassinado a facadas, você usaria uma faca como
símbolo?". Tal "objeção" não tem sentido. Devemos lembrar que a
morte de Cristo não foi um acontecimento trágico, um mero assassinato, um
lamentável erro judicial que só produziu dor. A morte de Cristo é a única fonte
de redenção para os homens. Cristo não foi meramente um "coitado",
nem mesmo um mártir, mas sim algo que somente Ele é: o Salvador.
Outros dizem que usar a
cruz como símbolo seria idolatria. Mas o que é idolatria? Tributar o culto
devido somente a Deus à qualquer ser ou objeto que não seja Ele. Desse modo, se
eu cometerei ou não idolatria ao utilizar um símbolo, isso dependerá da
disposição do meu coração, mais do que ao objeto que utilizo em si. Dessa
maneira, se eu utilizo a cruz apenas como um símbolo e memorial, eu não cairei
no erro da idolatria.
Devemos também nos
lembrar de que a cruz é usada como símbolo cristão desde tempos remotos. Bem
antes da "conversão" de Constantino, o teólogo Tertuliano de Cartago
registra que os cristãos eram chamados de "devotos da cruz". Em sua
época (séc. II-III) o sinal-da-cruz também já existia (o que é uma refutação às
"Testemunhas de Jeová" e outros grupos, que afirmam que apenas com a
"paganização" de Constantino a cruz com duas traves passou a ser
utilizada como símbolo cristão).
E esta birra contra a
cruz, que muitos evangélicos possuem, é um fenômeno historicamente e
geograficamente limitado. Em outros países, é muito comum que até mesmo igrejas
batistas e pentecostais utilizem a cruz como símbolo, seja na torre da igreja,
ou na parede atrás do púlpito. Uma rápida pesquisa no Google pode mostrar isso.
Por fim, manifesto minha indignação: porque um grande número de
evangélicos são contra o uso da cruz, que é tradicionalmente um símbolo
cristão, mas utilizam a estrela de Davi e o menorá (candelabro do templo), que
são sombras do Antigo Testamento?
OUTROS SÍMBOLOS
O homem é um ser simbólico.
Ele se utiliza de símbolos para expressar e entender a sua vida, seus afetos,
suas crenças e seus pensamentos. Todas as sociedades contam com uma série de
símbolos, que são comprovadamente úteis ao transmitir uma mensagem. O aperto de
mão, a festa de aniversário, as alianças de casamento, o vestido de noiva, a
bandeira nacional, o minuto de silêncio, as medalhas e muitos outros símbolos
permeiam a cultura ocidental (as demais culturas possuem seus próprios
símbolos). Dessa maneira, não há problema algum (muito pelo contrário) em se
utilizar símbolos na liturgia e nos templos, desde que tenham uma séria
mensagem a transmitir e não se tornem um fim neles próprios. Além da cruz,
vários outros símbolos podem ser utilizados: o peixe (usados pelos primeiros cristãos),
as palmas no Domingo de Ramos,etc. Algumas tradições mais litúrgicas
utilizam-se também de velas, incenso, cinzas, etc.
Um simbolismo que deve
ser analisado a parte é o das vestimentas clericais. Sabemos que em nossa
sociedade, certas profissões se utilizam de vestuário particular a fim de
expressar sua função. Assim acontece com os policiais, soldados, médicos,
guardas cerimoniais, bombeiros, etc. Essas vestimentas tem a vantagem de fazer
aqueles que as utilizam "desaparecer" dentro delas. Não há mais
espaço para se dizer: "olhem só, como fulano está chique!", ou
"a marca da roupa do soldado X e melhor do que a do soldado Y". Isso
não seria proveitoso em nossas igrejas, nas quais muitos pastores disputam quem
está com o melhor terno ou camisa? Vale lembrar também que os sacerdotes do AT
utilizavam vestimentas distintivas. As peças e cores a ser utilizadas também
devem transmitir uma mensagem. Acho curioso que os mesmos irmãos que apoiam o
uso de togas para os coristas da igreja e vestes brancas para os batizandos
critiquem as vestes especiais para os pastores!
A ORAÇÃO LITÚRGICA
O tipo de oração que
utilizamos no culto público deve ter algumas diferenças em relação a oração
particular ensinada por Jesus. Como o culto público é comunitário, é o serviço
(leitourgia) do povo de Deus, as orações devem seguir tais características. As
orações litúrgicas estavam presentes no culto do povo de Deus no AT (como o
"Shemah Israel"- Dt 6.4- e a Benção Aaraônica - Nm 6.22-27) e desde
muito cedo foi utilizada na liturgia cristã. No documento conhecido como
"Didaque", datado dos séculos I-II vemos que existe a prescrição de
se orar o "Pai Nosso" três vezes ao dia, além de orações próprias
para a consagração dos elementos da ceia do Senhor. Por volta do ano 215, Hipólito
de Roma registra como "Tradição apostólica" certas orações
eucarísticas recitadas (se as estudarmos bem, veremos que não se tratam de
invenções ex nihilo, mas de um costume baseado nas orações que os judeus faziam
a mesa).
Alguns dizem que as
orações recitadas são vãs repetições, o que seria condenado por Cristo em Mt
6.7 . Mas, na verdade, o que determina uma oração ser uma vã repetição (ou,
conforme outra tradução do texto, "palavreado inútil") é,
primeiramente, uma falta de disposição do coração e o fato de se estar apenas
repetindo sem pensar (Is 29.13, Mt 15.8). A partir do momento que eu
"degusto" as palavras e as profiro com todo o coração, sem excessos,
me unindo à fé da Igreja, elas são uma oração que Deus aceita. Se não fosse
assim, teríamos que parar de entoar os hinos de nossos hinários, muitos dos
quais são orações cantadas, que repetimos há séculos! Lembremos também que o
próprio Jesus, ao prescrever o "Pai Nosso", instrui-nos que
"digamos"(Lc 11.1-4) as mesmas palavras, e não que apenas nos
inspiremos nelas (como alguns teólogos costumam dizer).
Também devemos ter em
conta que no culto público, estamos oferecendo um "tributo" oficial
ao Rei do Universo, diante de sua corte angélica (I Co 11.10). As orações
recitadas são mais apropriadas nesse contexto pois, além de sua maior beleza e
harmonia estética, possuem bases teológicas firmes, o que impede de ouvirmos de
quem conduz a oração pública algumas coisas como: "Passa a vassoura de
fogo aqui, Senhor", "Eu repreendo o Zé Pelintra" além de uma
bagunça entre as pessoas da Trindade que vemos em nossos cultos.
As orações recitadas
também permitem que todos tomem parte no culto divino, fortalecendo seu aspecto
coletivo, que de outra maneira ficaria um tanto prejudicado.
Por fim, nas orações
recitadas, todos podem participar de forma adequada, todos sabem onde irão
começar e onde irão terminar (um forte princípio de ordem), e a congregação se
une à Igreja de todos os tempos e lugares que pronunciaram as mesmas palavras
(especialmente quando se trata do Pai Nosso - a oração que o próprio Jesus nos
ensinou - e os credos da Igreja - que transmitem as doutrinas básicas de nossa
fé).
Sobre a oração litúrgica,
podemos falar ainda mais. Sistemas como breviários e a Liturgia das Horas
fazem-nos esquecer dos cuidados terrestres e entrar no “ritmo da eternidade”,
associando-nos aos cristãos de todas as épocas e lugares que entraram nesse
exercício sagrado., além de boa parte de seu conteúdo ser composta de orações
bíblicas, como os salmos. Por vezes, quando nos encontramos deprimidos e
fracos, as orações litúrgicas recitadas são uma fonte de consolo e inspiração.
Sendo aprovadas pela fé da Igreja e pelo uso do tempo, tem se mostrado também
como modelo para outros tipos de orações que podemos (e devemos) praticar em
nossas vidas diárias.
OS HINOS
É surpreendentemente
estúpido como várias igrejas jogaram no lixo toda uma tradição de excelentes
hinos e cânticos, que transformaram e alentaram vidas ao longo dos séculos,
para usar apenas canções de qualidade duvidosa, que muitas vezes servem apenas
para alimentar o ego das pessoas. Não estou dizendo que TODOS os hinos antigos
eram bons, muito menos que TODOS os hinos modernos são ruins. Muitos hinos
foram escritos e compostos no passado, mas apenas os bons chegaram a nós. Há
excelentes hinos recentes de vários estilos, com uma mensagem de adoração a
Deus e melodias que nos tocam. Mas tudo deve ser usado com um saudável
equilíbrio. Há espaço tanto para os hinos tradicionais, quanto para os de
(bons) cantores cristãos de nossos dias.
Entre os hinos
tradicionais, temos o canto gregoriano, do qual falo em outro artigo. Esse tipo
de música tem a vantagem de conduzir-nos a um ambiente mais espiritual, pois é
totalmente diferente da música secular, e basta começarmos a ouvir suas notas
para o associarmos à música sacra. Várias poesias medievais foram escritas para
o canto gregoriano, muitas das quais foram, posteriormente, traduzidas para o
português, como “Ó vem Emanuel”
As obras sacras dos
grandes mestres estão à altura do culto que devemos prestar àquele que é o Rei
do Universo. Haendel, Bach, Purcell, Beethoven, Mozart, Vivaldi, Palestrina,
Tchaikovsky e muitos outros compuseram excelentes peças, que deveriam ser mais
ouvidas pelos evangélicos brasileiros, e cantadas pelos corais de nossas
igrejas.
Outro estilo de boa
música sacra tradicional são os hinos dos hinários das igrejas evangélicas,
como a Harpa Cristã, o Salmos e Hinos, o Hinário Evangélico e o Hinário
Luterano. Nossos pais e avós cantaram com todo o fervor esses hinos, e foram
muito edificados por eles. Algumas pessoas costumam se opor ao uso desses hinos
pois eles possuem algumas palavras e frases difíceis de entender. Ora, isso é
apelar para a lei do menor esforço! Justamente por sua harmonia e sofisticação
estética, esses hinos são adequados para o culto divino, e nos levam a aumentar
nosso vocabulário pesquisando o significado de certos termos.
AS ARTES VISUAIS
Retomando os princípios de que Deus é digno do melhor e de que o homem é
um ser que se comunica por símbolos, percebemos que devemos usar a beleza
estética para a glória de Deus em nossas liturgias. Assim sendo, as chamadas
artes visuais, desde que não tendam para à idolatria, deveriam ser utilizadas
quando há chances para tal.
Alguns apontam o segundo mandamento como proibição para o uso de arte
pictórica (vitrais, ícones, relevos,etc.) na Igreja. Mas, se analisarmos bem
todo o contexto dos Dez Mandamentos, além de outras passagens da Lei nas quais
o próprio Deus manda que imagens de seres fossem utilizadas na liturgia de Seu
povo, vemos que a proibição não abarca quaisquer tipos de imagens sacras, mas
apenas as de falsos deuses e aquelas às quais se tributa algum culto ou
reverência supersticiosa. Portanto, podemos ter vitrais, ícones, pinturas
mosaicos,etc. em nossas igrejas como decoração, memorial e estímulo aos
sentidos, mas não para tributarmos à estas imagens quaisquer formas de culto.
As imagens não passaram a ser utilizadas no Cristianismo com a
"contaminação constantiniana", conforme gostam de afirmar alguns
evangélicos desinformados, mas são bem mais antigas. Os Pais da Igreja
conheceram e aprovaram o uso de imagens sacras com os fins que citei
anteriormente. Se, em algumas Igrejas oficiais, o uso de imagens acabou
descambando para a superstição e idolatria em muitos casos, isso se deve à
ignorância das populações cristãs medievais, e não ao uso da arte em si.
CONCLUSÃO
Uma objeção à liturgias mais formais, seria que elas, supostamente,
barrariam a liberdade do Espírito Santo. Tal visão é baseada, em parte, num
certo egoísmo em relação á obra do Espírito Santo. Muitos irmãos caem naquilo
que Spurgeon constatou: as pessoas estão tão interessadas no que o Espírito
Santo as fala, que esquecem o que o Espírito Santo falou à outas. Ora, não pode
o Espírito Santo ter iluminado seus pastores, ao longo da história, para que
elaborassem as citadas liturgias? Mesmo assim, eu reconheço que o Espírito
Santo pode querer fazer algo extraordinário no culto. Nesse caso, o dirigente
necessita de discernimento espiritual para saber "abrir uma exceção".
Não, ao propor o uso de uma liturgia mais refinada, não quero proibir os
crentes de exercerem os dons espirituais ou de expressarem júbilo (com a devida
moderação) no culto.
Por fim, eu gostaria de refutar uma última objeção às liturgias
clássicas. Muitos evangélicos dizem que são um "resquício de
romanismo". Ao meu ver tais irmãos, ao jogarem fora a água do banho, jogam
o bebê junto. Muita coisa boa nos foi legada pela Igreja de Roma. Foi de lá que
nós saímos, e de onde aprendemos as doutrinas da Trindade, das duas naturezas
de Cristo, o cânon do Novo Testamento e uma série de práticas e moralidade.
Áquilo que herdamos de bom da Igreja Católica Romana, devemos chamar de
"catolicidade", a herança comum do Cristianismo, baseada na
verdadeira fé apostólica. Se a Igreja de Roma distorceu alguns pontos
doutrinários, litúrgicos e práticos da Bíblia, somente à isso devemos tratar
por "romanismo". Lutero não queria reconstruir a Igreja do zero, mais
consertar aquilo que julgava, à luz da Bíblia, estar errado. Por isso, ao
sistematizar a liturgia de sua igreja, preservou costumes como as vestimentas,
orações recitadas, credos e o calendário litúrgico, pois tais coisas não são
proibidas nas Escrituras, e mostraram-se proveitosas ao longo dos séculos. Em
relação a outras coisas, como recitar a liturgia numa língua que o povo não
entendia, tributar culto ás imagens e invocar santos mortos, Lutero
corretamente abriu mão dessas práticas.