Com esse artigo, gostaria de
iniciar uma série de textos a respeito da evolução e características da música
no culto cristão, do período dos apóstolos até os nossos dias. Começaremos
falando da música sacra da Igreja primitiva.
Podemos observar, pela Bíblia,
que a música sempre participou do culto à Deus. No período veterotestamentário,
os levitas (descendentes de Levi, filho de Jacó) eram os responsáveis pelos
cânticos, que eram acompanhados por uma série de instrumentos de corda, de
sopro e de percussão. O livro de Salmos tornou-se o hinário do povo de Israel
por excelência.
No Novo Testamento, vemos os
apóstolos cantando com Cristo. Na ocasião, havia se desenvolvido a liturgia não
apenas no Templo de Jerusalém, centro máximo da adoração judaica, mas também
nas sinagogas, onde o povo ouvia a proclamação da Palavra de Deus, e oferecia
suas canções e orações.
Sabemos que o Cristianismo é
oriundo do Judaísmo. O Salvador e os apóstolos eram judeus. Por isso, esse modo
de cantar do antigo povo de Israel foi a grande influência dos hinos cristãos
nos primeiros séculos. Outra fonte de influências foi a música grega. Sendo o
grego a "língua internacional" da época, os livros do Novo Testamento
foram escritos nessa língua. E na medida em que o Evangelho se espalhava pela
Ásia, Europa e África, muitos homens e mulheres de fala grega foram acolhidos
no seio da Igreja. A música era
praticamente uma ciência para os gregos, que tentaram sistematizá-la de forma
racional e matemática. Dessa associação de características judaicas e gregas,
desenvolveram-se as primeiras gerações de hinos cristãos.
Nesta, que foi a primeira fase da
música no culto cristão, temos algumas peculiaridades. As melodias eram
cantadas em uníssono e, provavelmente, sem acompanhamento instrumental (pois os
instrumentos eram considerados, por vários Pais da Igreja, como "sombras
da lei" ou associados ao paganismo dos gentios) e possuíam poucas
variações de altura, raramente ultrapassando a oitava. Provavelmente o termo
"cantochão" daí se deriva.
Temos registros dos cânticos por
parte de Inácio, bispo de Antioquia. Ele introduziu o costume da "salmodia
antifonal" na liturgia cristã. Essa consiste no canto intercalado entre
grupos na congregação, ou entre esta e cantores "especializados".
Mesmo o intelectual pagão Plínio,
o Jovem, registra os cânticos da Igreja, afirmando que os cristãos tinham o
"(...) costume de se reunirem num dia fixo, antes do nascer do sol, para
cantar um hino a Cristo como a um deus"
Mas quais hinos eram cantados?
Além dos Salmos, vários outros cânticos, alguns provenientes dos Evangelhos. O
Magnificat (Cântico de Maria – Lc 1.46-55) e o Nunc Dimittis (Cântico de Simeão
– Lc 2.29-32) são alguns deles. Aos poucos, entre os séculos II e IV outros
hinos, geralmente escritos em grego, surgiram. Entre os hinos desse período,
temos o "Luz bendita", até hoje entoado nas igrejas católicas gregas.
Também temos as "Odes de Salomão", coleção de hinos escritos em
siríaco. Alguns pais da Igreja do período, como Clemente de Alexandria e
Gregório de Nazianzo também escreveram hinos.
No século IV, viveu Éfrem, o
Sírio. Grande apologista da sã doutrina, escreveu muito de sua obra na forma de
hinos. Por isso ficou conhecido como "a cítara do Espírito Santo".
No Ocidente, o grande teólogo e
bispo Ambrósio de Milão era um amante da música. Escreveu muitos hinos, cujas
traduções podem ser ouvidas até hoje em muitas igrejas, além de arranjar
melodias no estilo daquelas compostas pelos primeiros cristãos. Ambrósio também
compilou os primeiros hinários, e esse tipo de música ficou conhecida como
"canto ambrosiano". Agostinho de Hipona, considerado o maior dos Pais
da Igreja, reconfortava sua alma nos cultos da igreja de Milão, relatando o
seguinte em suas célebres "Confissões":
"Quantas lágrimas verti, de profunda comoção, ao mavioso ressoar de teus hinos e cânticos em tua igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande bem-estar.” (Agostinho, Confissões)
A tradição atribui o célebre hino
latino "Te Deum" (A Ti, ó Deus, Louvamos) à autoria conjunta de
Ambrósio e Agostinho.
Enquanto isso, no Oriente, João
Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, encarrega o músico da corte imperial
de desenvolver músicas para as igrejas. A partir daí surgirá o "canto
bizantino", até hoje entoado nas Igrejas Ortodoxas.
O auge de toda essa produção de
hinos se dá com o chamado "canto gregoriano", baseado nos já citados
hinos dos primeiros cristãos. Recebe este nome devido ao papel indispensável do
papa Gregório Magno em sua organização Escritor de muitos hinos, como o
"Audi Benigne Conditor" e o "Nocte Surgentes", Gregório
compilou também um "Antifonário", com os textos das Horas Canônicas e
um "Gradual", com os cânticos utilizados na liturgia da missa.
Iniciou também uma "Schola Cantorum", que traria grandes
desenvolvimentos a esse tipo de canto, originalmente chamado de "canto
romano". Além de ser cantados em uníssono e sem acompanhamento, tinham
como característica a grande frequência de passagens melismáticas.
O canto romano ou gregoriano
vicejaria na Europa nos séculos seguintes, tendo se expandido, entre outros
fatores, graças à tentativa de Carlos Magno de unificar a liturgia em seu vasto
império. A partir de então, essa veio a se tornar a música por excelência da
Igreja ocidental durante séculos.
No entanto, nesse período, a
congregação tornou-se uma mera expectadora da liturgia divina. Estabelecendo-se
o latim como língua litúrgica oficial (mesmo que o povo não a entendesse), o
canto gregoriano se tornou prática exclusiva dos sacerdotes e de coros
treinados. Somente com a Reforma Protestante do século XVI veremos a liturgia
contar novamente com a participação popular. Na Igreja Católica, haveria uma
série de inovações na música, que veremos em outras postagens. Mas no seio
dessa instituição, a partir do século XIX, graças a obra dos religiosos do
"Mosteiro de São Pedro de Solesmes", o canto gregoriano passa a ser
muito mais valorizado, divulgado e estudado. Atualmente, em várias lojas e
livrarias podemos encontrar cds deste estilo gravados por coros de monges de
várias partes do mundo. Na opinião do Rev. João Wilson Faustini, pastor da
Igreja Presbiteriana Independente (IPIB), e grande especialista em música
litúrgica, o canto gregoriano “É considerado o tipo mais puro de música sacra
que existe, por ser completamente diferente da música secular e estar associado
só a cantos litúrgicos”.
No próximo artigo, estudaremos o
desenvolvimento da música eclesiástica na Idade Média.
APÊNDICE:
Mas Giovani, eu vi no Youtube uma gravação de canto
gregoriano em que se invoca "lúcifer". Como explicar isso?
R. Na verdade, existe a tal
palavra, mas devemos entender que no contexto em que está sendo usada, não se
refere ao adversário de nossas almas, e sim a nosso Senhor Jesus Cristo.
Trata-se de um canto da Vigília de Sábado Santo na qual Cristo é devidamente
chamado de "astro da manhã", que em latim se diz "lucifer".
Sabemos que o diabo não é mais um anjo de luz, mas Cristo é por excelência um
astro resplandecente brilhando como a manhã da vida eterna em nossas almas (Ml
4.2, Pv 4.18), . Por último, na Vulgata, tradução latina da Bíblia feita por
Jerônimo, podemos ver que "lucifer", em outras passagens, também tem
um bom sentido, como usado em II Pe 1,19 (traduzida na versão Almeida como
"estrela da alva"). Assim sendo, quem atacou a ICAR, na Internet, com
esse argumento, deveria estudar mais.