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terça-feira, 4 de setembro de 2018

A mesmice do culto evangélico brasileiro

Com esse artigo, irei tratar de um assunto muito pertinente na discussão sobre o culto divino no meio evangélico brasileiro. Devido a uma série de questões sociológicas e pragmáticas, como eu e muitos outros temos tratado em artigos, desenvolveu-se no meio evangélico brasileiro um tipo de liturgia e de vocabulário específicos( que muitas vezes apenas os participantes entendem). Qualquer costume ou ato que fuja a isso é considerado herético. Assim, se um batista ou pentecostal vai a um culto luterano, fica escandalizado, achando que "aquilo tem cara de missa". Nós que conhecemos bem o ódio nutrido pelos protestantes brasileiros  contra a Igreja de Roma, podemos entender que tal expressão é uma das piores ofensas que pode sair da boca de um evangelical brasileiro médio. Argumenta-se que liturgias tradicionais são ultrapassadas, engessadas e repetitivas. A respeito deste último aspecto se desenvolverá a nossa reflexão. Não seria o culto evangélico brasileiro bem mais repetitivo do que uma liturgia histórica tradicional? O culto aqui descrito não existe 100% dessa maneira em nenhuma igreja que eu conheça, mas reúne características de cultos de várias igrejas tradicionais e pentecostais que frequentei, visitei ou vi pela TV/YouTube. Vamos começar?

Primeiramente, por mais que tenham repugnância à palavra liturgia e aos boletins de culto, os evangelicais praticam sempre a mesma ordem no culto. Começa-se com a oração inicial, seguem-se alguns cânticos, leitura da palavra, ofertas, sermão, celebração dos sacramentos, oração final e benção. Em alguns grupos que tentam ser um pouquinho mais litúrgicos, adiciona-se uma oração de confissão, outra de iluminação e um envio, nos devidos momentos. Agora, que constatamos que o esquema dos cultos é quase sempre o mesmo, vamos analisar as partes.

ORAÇÕES: A principal característica das orações feitas no culto público em nossas igrejas é o individualismo. Ignorando que no culto o povo de Deus deve estar em comunhão de coração, mente e expressão, acabaram criando o péssimo argumento de que orações recitadas, como o Pai Nosso, são as vãs repetições que Jesus condena nos Evangelhos. Por isso, cada um deve orar com suas próprias palavras. Numa igreja tradicional, um irmão é convidado a elevar a voz em nome da igreja, que acompanha em silêncio. Aí já começa a mesmice. Apesar de nunca recitar uma oração inteira, como na missa católica, o evangélico brasileiro sempre repetirá os mesmos chavões e clichês em suas orações "espontâneas". Começando com "Senhor nosso Deus e nosso Pai", incluirá sempre "para a honra e glória do teu nome", "Senhor, sabemos que estás aqui","põe os teus anjos aqui",etc. Concluirá com "é o que nos te pedimos e agradecemos, em nome de Jesus". Independentemente do pastor dizer que é uma oração de confissão, ou de louvor, ou de iluminação, o irmão sempre vai querer orar por tudo de uma vez só. Os demais fiéis ficam em dúvida: apenas concordamos com o que o irmão diz (e isso pode ser perigoso, pois vez ou outra um irmão menos esclarecido proferirá heresias), ou se fazemos nossas próprias orações em silêncio (o que também não é bom, visto que por vezes estamos "inspirados" na oração, e temos que terminá-la do nada quando o irmão representante termina a sua). Numa igreja pentecostal, a coisa é ainda mais confusa. Todos oram em voz alta, ao mesmo tempo, e ninguém entende o que o outro quer dizer. Por vezes, quem está dirigindo a oração já terminou, mas ninguém sabe, porque algum irmão mais "fervoroso" ora ainda mais alto. Entre outros clichês que se repetem nessas orações "livres", "sinceras" e "espontâneas", estão aquelas que se referem aos demônios. Alguns irmãos os chamam pelo nome dos seres espirituais das religiões afro ("Senhor, repreende o exu-caveira"), ou simplesmente "repreende tudo o que o Inimigo planejou contra esse culto". Quase sempre a pessoa que dirige a oração o fará de olhos fechados, bem fechados, comprimindo os músculos e nervos da face, e fazendo uma cara estranha. Agora, eu vos pergunto: O culto divino deve ser comunitário. Que comunhão houve com cada um fazendo uma oração diferente, por vezes com propósitos diferentes, com intenções diferentes? Não seria mais coerente, edificante, belo e expressivo orar uma oração recitada, como o Pai nosso ou um salmo?

LOUVORES: Devido aos parcos recursos (ou mesmo à preguiça dos dirigentes), em algumas igrejas só se cantam os mesmos hinos. O pior é que esses hinos, quando não abertamente heréticos (como "restitui, eu quero de volta o que é meu", "não conseguiremos ficar em pé", "hoje o meu milagre vai chegar", etc.), tratam apenas de temas periféricos, como bençãos, vitórias, etc. Outro tipo de hino, que faz sucesso em igrejas pentecostais, são os que falam que a glória de Deus vai descer, Deus vai operar, o manto vai descer, vejo o poder de Deus, entre outros. E a coisa só fica nisso. Canta-se tanto, e o máximo que acontece é todo mundo se exceder no emocionalismo e no chamado "Reteté". Vidas transformadas? Nenhuma. Enfermos curados? Nenhum. Milagres? Nenhum. Almas resgatadas? Nenhuma. O oculto e o escondido revelados? Não.E ainda dizem que "Deus agiu poderosamente" no louvor, apenas porque "sentiram uma coisa boa no coração", porque ouve barulho, etc. Outro problema com muitos hinos atuais é que eles são, além de musicalmente pobres, muito repetitivos. Se canta a primeira estrofe duas vezes, o coro outras três, a frase final umas dez, e depois se repete tudo três vezes. Ora, não são esses mesmos irmãos que criticam o rosário dos católicos romanos por repetir muitas vezes a mesma oração? Não são muitos hinos orações cantadas? Ah, sim, nesse ponto, temos algo curioso: pela lógica desses irmãos, sequer poderíamos cantar hinos de hinários, visto que as palavras são decoradas e previamente escritas. Nesse caso, o que deveriam fazer? Esperar que o Espírito Santo concede-se a alguém uma letra e melodia na mesma hora! Mas esperar isso como algo comum em todo culto (vez ou outra Deus pode agir dessa maneira, reconheço), em todo o momento de louvor, seria no mínimo ridículo. O Espírito Santo tem mais o que fazer no culto do que conceder material para quem distorce a sã Palavra inspirada por Ele. E eu não poderia deixar de falar que, no geral, a igreja canta pouco. A esmagadora maioria dos louvores é deixada na conta de corais, duetos, conjuntos e solistas, o que contraria o princípio protestante de que a ênfase deves ser toda a congregação adorando a Deus junta. É óbvio que um coral treinado proporciona uma belíssima experiência espiritual para a igreja, que um bom solista deve ter seu dom utilizado no culto, mas tudo com certo limite. Outro problema comum, é que os ministros de louvor, que teoricamente deviam apenas cantar, tentam "animar" a igreja, repetindo os mesmos clichês, como "esquece quem tá do teu lado e adore a Ele"(ora, se eu quisesse adorar a Deus sozinho, ficaria em casa!), entre outras frases que estimulam o emocionalismo e o individualismo, além de ordens ridículas como "diga tal coisa ("a vitória vai chegar", "adore a Ele",etc.) para o irmão ao lado". Outra coisa curiosa é que é só o forrózinho começar, que "o fogo cai".

LEITURAS BÍBLICAS E SERMÕES: Enquanto num culto luterano ou anglicanos se faz três ou quatro leituras das Escrituras (e estas sempre variam, de modo que, ao longo de três anos, a Bíblia tenha sido lida por completo no culto público), nas igrejas evangélicas há apenas uma leitura da Bíblia, e quase sempre a mesma. Se vão ler os Salmos, se limitam ao 23, 91, 103 e 150. Quando vão ler os Evangelhos, raramente escolhem os que tratam dos ensinamentos de Jesus: apenas os milagres do Senhor são enfocados. Dificilmente se lê as epístolas de Paulo (uma notável excessão é a leitura de que "nada nos poderá separar do amor de Deus"). Os sermões seguem o mesmo princípio: milagres, bençãos, vitórias, a luta tá difícil mais hoje Deus vai fazer algo diferente, etc. Em muitas igrejas pentecostais, quando pregadores de fora são convidados, quase sempre fazem as mesmas coisas: começam elogiando a igreja e o pastor, falam que teologia é bom, mas que o que importa é o "Espírito". Tentam produzir avivamento na igreja, mandando os irmãos dizerem "glória a Deus" e "aleluia" a toda hora. Começam a engrossar a voz. Começam a usar a expressão vocal na seguinte cadência: blábláblábláBLÁAAA, bláblábláblábláBLÁAA. Depois, caso o pregador seja de fora, pede para o pastor da igreja a permissão para fazer um apelo para quem está fraco ou está passando por uma grande luta, pois naquele dia Deus vai mudar a situação. Sempre a mesma mensagem, o mesmo apelo, o mesmo barulho, os mesmos clichês, e nada muda. Outro problema é um biblicismo extremado na apresentação da Palavra. Sabemos que o Verbo se fez carne, e não livro. A Bíblia deve julgar todas as coisas e ser o guia primordial do culto, mas referências à História da Igreja, às vidas de grandes servos de Deus, e mesmo comparações ou analogias com as notícias do dia, com a filosofia e as ciências, e com a cultura comum, servem para abrilhantar o sermão de um modo belo e correto

CELEBRAÇÃO DOS SACRAMENTOS: Apesar de a Igreja primitiva celebrar a Ceia do Senhor todos os domingos, as igrejas evangélicas criaram uma série de outros padrões: uma vez ao mês, duas vezes ao mês, uma vez ao ano, etc. E curiosamente criticam as que insistem em manter o padrão neotestamentário da comunhão semanal. A liturgia da ceia praticada pelos evangelicais também acaba se tornando uma mesmice: as mesmas leituras, as mesmas ameaças, os mesmos gestos, os mesmos hinos, etc. Ao menos na liturgia histórica, os elementos possuem nobreza e beleza, e as orações possuem partes móveis de acordo com as datas do calendário litúrgico. Algo também precisa ser dito a respeito do batismo. Nas igrejas que só batizam adultos (pentecostais, batistas e adventistas), é feita a pergunta: "promete ser fiel à doutrina da igreja?".  Os batizandos sempre vestem um roupão branco (isso não seria uma espécie de veste litúrgica? Com que lógica então se questionam as estolas pastorais?). Nas igrejas que batizam bebês (como as presbiterianas e metodistas), o ritual é feito como que sendo um acidente no culto, um corpo estranho que é encaixado de qualquer jeito, com o pastor repetindo os velhos clichês de "filho da promessa" e "ovelhina de Jesus".

APELO EVANGELÍSTICO: Segue-se um apelo, como o menino do teclado tocando ao fundo uma melodia melosa, para que os descrentes presentes aceitem a Jesus como Salvador. O apelo é quase sempre assim: "Você ouviu o que Deus falou através do pregador, você se sentiu tocado pelos hinos. Agora, eu lhe pergunto, você quer esse Jesus na tua vida? Então venha aqui na frente, e faremos uma oração por você". O apelo também pode criar uma falsa sensação de segurança, pois a pessoa julga que ir a frente assegura a sua salvação. Eliminar o apelo? Nem tanto, basta explicar o seu significado corretamente.

AMBIENTE DE CULTO, TIPOS DE CULTO: A decoração é sempre a mesma. As mesmas flores e cortinas nos mesmos lugares, as mesmas toalhas na mesa da santa ceia. Os pastores sempre de terno e gravata, por mais que esteja 50º de temperatura (e ainda assim criticam os padres por usarem suas vestes clericais na missa!). Apesar de rejeitarem o calendário litúrgico clássico, muitas igrejas fazem o seu próprio calendário: dia tal é culto da família, o outro é culto de libertação, outro ainda é o culto de ensino. Uma vez por ano é o congresso dos jovens, no Natal e na Páscoa é a apresentação do coral,etc.Também, durante o culto, as pessoas sempre fazem os mesmos gestos, e sempre as mesmas pessoas

Caros leitores, eu quis desarmar aqueles que argumentam a favor de uma liturgia espontânea, que não é nada espontânea, mas cheia de trejeitos típicos, mesmices, clichês e chavões. O culto evangélico brasileiro é bem mais repetitivo do que a Missa de Paulo VI, do que a liturgia prevista do Livro de Oração Comum, do que a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo. E, infelizmente, nossos padrões e repetições são teologicamente e espiritualmente pobres e razos. É hora de repensarmos o nosso culto público. É culto, pois é devido ao Soberano Criador dos céus e da terra, não à um qualquer (como temos pecado ao oferecer a Deus coisas malfeitas, sem cuidado, sem carinho, sem preparo!) É público, porque todo o povo de Deus participa em conjunto, no mesmo espírito e na mesma fé. Não é correto dizer: "passe o culto como se não houvesse mais ninguém". Ora, se é para mim culturar sozinho, orar espontaneamente com minhas próprias palavras, cantar hinos sozinho com minha voz afinadíssima, ouvir um bom sermão, eu posso ficar em casa. Agora, se eu desejo participar da comunhão do povo de Deus, sinto prazer em recitar as Escrituras em uníssono com meus irmãos,em orar o Pai Nosso com verdadeiro fervor,  em recitar o Credo com eles, em cantar os hinos e cânticos junto com a Igreja inteira, em levantar as mãos ou ajoelhar com os demais, em partilhar o sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo entre seus amigos, em dedicar-me a Deus (e aos olhos do povo santo) no sacramento do batismo, em dizer o amém depois que o pastor impertra a benção, o lugar para mim é a Igreja. Infelizmente, tenho que dizer: esse lugar deveria ser a Igreja.

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