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terça-feira, 4 de setembro de 2018

POR QUE ABANDONEI A ESCATOLOGIA DA NOVELA 'APOCALIPSE'



Marcelo Lemos*

'Apocalipse', novela da Record TV (2018), não faz o mesmo sucesso que 'Dez Mandamentos' (Record TV, 2015). Ainda assim, o capítulo que retratou a teoria do arrebatamento secreto rendeu bons números no IBOPE. Mas, por que digo teoria do arrebatamento secreto? Porque, ao contrário do que boa parte do público possa acreditar, o arrebatamento secreto não é uma doutrina histórica da Igreja, tendo surgido no início do Século XX, ou seja, há pouco menos de 200 anos. Existe uma pretensão de datação mais antiga com base em duas alegações de antiguidade (BRAY, 1995; JEFFREY, 1995; apud MACPHERSON)1, mas não passa disso, uma tentativa de dar à teoria uma autoridade histórica até agora desconhecida.

Entretanto, como essa é uma teoria é extremamente popular, muitos sequer imaginam que a fé histórica da Igreja jamais falou de um arrebatamento secreto. Há uma reação imediata quando experimento comentar, com alguns familiares e amigos, a teoria por trás da novela ‘Apocalipse’. “Todas as Igrejas ensinam isso”. Ou, “sempre acreditei dessa forma, porque é exatamente isso que a Bíblia diz”. E é bem possível que a maioria das igrejas evangélicas a ensinem, mas não é verdade que todas façam isso. Também precisamos questionar se é verdade que a Bíblia lhe dá algum suporte.

Vamos olhar para o que ensina a teoria do arrebatamento secreto. Em termos práticos, essa teoria diz que Jesus Cristo virá mais duas vezes ao mundo. Hunt, renomado defensor do arrebatamento secreto, afirma isso textualmente em um artigo publicado no site da revista Chamada da Meia Noite. Ele afirma que, primeiro, Jesus irá voltar sem aviso, antes da Grande Tribulação, o que pegará a maior parte das pessoas de surpresa. Porém, o autor defende que esta não será a única vinda, pois “as Escrituras ensinam outra vinda de Cristo”, após a Grande Tribulação, “quando todos os sinais já estiverem sido cumpridos e todos souberem que Ele está voltado”. Sem rodeios, o autor declara que é impossível escapar “do fato de que duas vindasde Cristo ainda se darão no futuro: [...] as duas não podem ser o mesmo evento” (CHAMADA, 2012, grifos nossos)2.

Apesar das declarações de Hunt, geralmente um defensor do arrebatamento secreto não costuma falar abertamente uma Segunda e uma Terceira Vinda. Sua literatura irá usar apenas a expressão Segunda Vinda, por mais que isso signifique uma contradição interna na teoria. E, como veremos, o ensino sobre duas vindas de Cristo no futuro não pode ser encontrado nas Escrituras. Para resolver esse problema, a maioria dos seus defensores argumentam que, de fato, haverá somente uma Segunda Vinda, porém, dividida em duas fases. Essa explicação, que difere das afirmações de Hunt, pode ser encontrada na Teologia Sistemática de Thomas Paul Simmons, publicado no site Palavra Prudente. No capítulo intitulado ‘As Duas Fases da Vinda de Cristo’, autor não apenas defende uma Segunda Vinda em duas fases, como também admite que a Bíblia ensina apenas uma vinda futura, ao mesmo tempo que desdenha da óbvia contradição que isso produz em sua teoria escatológica.

Nossos oponentes escarnecem da ideia de um período de tempo entre as duas fases da vinda de Cristo. Dizem que ensinamos que haverá duas vindas em vez de uma. Podem chama-la o que quiserem. O Novo Testamento fala só de uma vinda, mas claramente revela que essa uma vinda consistirá de duas fases, separadas por um período de tempo. Preferimos crer o que ele ensina, desatendendo as perversões dele (PALAVRA PRUDENTE, acesso em 8 mai. 2018, grifos nossos)3.

A conclusão é que a teoria do arrebatamento secreto implica dizer que haverá duas vindas de Cristo. Como já vimos, tal conclusão é apontada também por alguns de seus próprios teóricos (CHAMADA, 2012), não sendo, como sugere Simmons, acusação de oponentes escarnecedores. Outro renomado teórico dessa interpretação chega a falar em uma “tríplice divisão natural” (DA SILVA, 1988, pg. 12, grifos nossos)4 da Segunda Vinda, uma para a Igreja, no Arrebatamento, outra para Israel, no término da Grande Tribulação, e uma terceira, contra Gogue e Magogue, no término do Milênio. Uma coisa é certa: compreender a teoria é muito trabalhoso, por mais que afirmem que ela seria claramente ensinada nas Escrituras. Seja como for, continuaremos nossa análise perguntando: e o que acontecerá nas eufemisticamente chamadas5 duas fases da “Segunda Vinda”?

Segundo a teoria do arrebatamento secreto, na primeira Segunda Vinda, Jesus não será visto pelo mundo, mas apenas pelos cristãos. Daí ser dito que ele será secreto,pois retirará do mundo os que receberam o novo nascimento, mas deixará para trás os incrédulos e os falsos crentes [PENTECOST, 2006]6. Somente a Igreja, portanto, ouvirá o som da trombeta enquanto é levada para encontrar com Jesus nas nuvens do céu. Livros, filmes, pregações e hinos baseados nessa ideia falam de aviões desgovernados, porque o piloto foi arrebatado, ou de pais, filhos e mães que, de repente, desaparecem do mundo. Foi justamente essa cena que concedeu à “Apocalipse” (Record TV, 2018), um momentâneo sucesso de audiência. Milhões de pessoas acreditam na teoria, ou pelo menos, a aceitam sem maiores questionamentos. Já na segunda Segunda Vinda, a teoria diz que Jesus voltará para colocar fim ao Reino do Anticristo, encerrando também a Grande Tribulação (que acreditam irá durará sete anos). 

O Novo Testamento, como admite até mesmo autores dessa escola (PALAVRA PRUDENTE, 2018), fala apenas de uma Segunda Vinda. “Da mesma forma, como o homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o Juízo, assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam” (Hb 9:27,28, NVI, grifos nossos). Observe a ênfase do texto na singularidade de cada um dos eventos citados. Os homens estão destinados a morrerem uma única vez. Assim como Cristo foi sacrificado uma única vez. E voltará, pela segunda vez, para o seu povo. A primeira vinda corporal de Cristo foi na Encarnação7, por isso sua vinda futura é chamada segunda. Em nenhum lugar a Bíblia fala de uma terceira vinda. Portanto, falar que acontecerão duas vindas futuras de Cristo (CHAMADA, 2012), ou que Jesus voltará a prestação, em duas fases (PALAVRA PRUDENTE, 2018), não resiste ao crivo das Escrituras.

É verdade que a Igreja encontrará o Senhor nos ares. “Depois disso, os que estivermos vivos seremos arrebatados juntamente com ele nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre” (I Tes 4:17, NVI). Este evento será instantâneo, numa fração de segundo, como descreve o mesmo apóstolo S. Paulo em I Cor. 15: 51,52: “Eis que eu lhes digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta. Pois a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados” (NVI). Mas em nenhum momento se diz que qualquer dessas coisas acontecerá secretamente.

De fato, a Segunda Vinda de Jesus será não apenas visível, mas estrondosa, “ao som da última trombeta, pois a trombeta soará” (I Cor 15:51,52). Essa trombeta também é citada em Tessalonicenses: “Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus” (I Tes 4:16, ACF 95). Alguns podem alegar que apenas os cristãos ouvirão a trombeta de Deus, mas quem diz isso são os teólogos dessa escola, não a Bíblia. Observe que apóstolo diz que a trombeta que anuncia tais coisas será a “última trombeta”. Buscando outras passagens das Escrituras encontramos que todas as nações do mundo presenciarão o toque dessa trombeta, e não que a Igreja secretamente a ouvirá.
  
Eis aqui vos digo um mistério: Nem todos dormiremos; mas todos seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados (I Coríntios 15:51-52, ACF 95, grifos nossos).

E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que diziam: Os reinos do mundo vieram a ser de Nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre. E os vinte e quatro anciãos, que estão assentados em seus tronos diante de Deus prostraram-se sobre os seus rostos e adoraram a Deus, dizendo: Graças te damos, Senhor Deus Todo-Poderoso, que és, e que eras, e que hás de vir, que tomaste o teu grande poder, e reinaste. E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o tempo dos mortos, para que sejam julgados, e o tempo de dares o galardão aos profetas, teus servos, e aos santos, e aos que temem o teu nome, a pequenos e a grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra (Apocalipse 11:15-18, ACF 95, grifos nossos)


Também as mudanças operadas no cosmos por ocasião da Segunda Vinda desmentem a ideia de que haverá um arrebatamento secreto,
  
Mas o Dia do Senhor virá como o ladrão de noite, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nela há se queimarão. Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que pessoas vos convém ser em santo trato e piedade, aguardando e apressando-se para a vinda do Dia do Senhor, em que os céus, em fogo, se desfarão, e os elementos, ardendo, se fundirão? Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça (I Pe 3: 10-13, ACF 95).

 A teoria é, no entanto, muito engenhosa e impressiona quem procura conhecê-la lendo seus manuais teológicos e ficções, o que pode explicar sua popularidade 8. Por muitos anos acreditei, preguei e ensinei a teoria do Arrebatamento Secreto sem a menor hesitação. Suas ficções são repletas de ação e suspense, e seus manuais teológicos enfileiram dezenas de referências. Acontece que, geralmente as referências bíblicas são isoladas e sem o trabalho de explica-las expositivamente. A maioria dos autores parece esperar que o leitor simplesmente confie que os textos citados realmente confirmem a teoria (veja nota9). Mas, por que as pessoas são convencidas? Talvez por algum tipo de apelo a autoridade, já que é preciso dedicar muito tempo e esforço apenas para compreender a lógica desse sistema interpretativo. Nestes casos, as pessoas tendem a achar mais prático e seguro confiar nos especialistas. Até porque, o sistema é tão confuso e complexo, que a maioria terá que consultar os manuais especializados de qualquer maneira. Então, para facilitar a vida daqueles que não possuem grande treinamento em teologia, algumas bíblias e manuais incluem infográficos detalhados explicando a complicada cronologia escatológica. O cenário perfeito.

Quando abandonei a teoria do arrebatamento secreto, tinha resolvido dedicar várias semanas ensinando sobre ela numa congregação pentecostal que pastoreava. Mandei imprimir cópias de uma apostila que havia escrito sobre o tema, e comparecia as aulas munido de dezenas de versículos, e de um colorido infográfico chamado ‘O Plano Divino Através dos Séculos’. Se algum aluno não conseguisse entender a teoria apenas com as leituras dos versículos, geralmente entendia, ou fingia entender, quando olhava para a cronologia ilustrada nas cores e ilustrações do infográfico. Geralmente funcionava muito bem. Menos com a irmã Marta. Numa de minhas palestras sobre o arrebatamento secreto, Marta foi a escolhida para ler algum versículo, que prontamente eu ia explicando.

- “Pastor”, ela pediu a palavra: “eu também acredito nisso, mas, honestamente?  Os versículos que estamos lendo não diz nada sobre ser secreto!”. Usei os argumentos canônicos da teoria, e ainda assim ela insistiu: “Verdade, pastor, também aprendi assim, e assim creio. Mas eu pensei que pelo menos um texto diria que é secreto. Me sinto confusa e frustrada por não entender”.

Igualmente frustrado, suspendi as aulas por algum tempo. Prometi aos alunos que estudaríamos outros assuntos, até que eu pudesse melhorar a qualidade do material. Estava envergonhado, mas achei melhor admitir que precisava rever as coisas e retomar o assunto com respostas mais apropriadas. Como a irmã Marta, descobri que o arrebatamento secreto que eu havia ensinado por tanto tempo, existia apenas nos manuais escatológicos de Dallas10, e no belo infográfico que eu mandara emoldurar. Quando retomei o assunto uns seis meses mais tarde, havia abandonado o Dispensacionalismo e suas estranhas teorias sobre a Segunda Vinda. Curiosamente, a irmã Marta preferiu continuar defendendo a teoria, mesmo sem conseguir prová-la.

Marcelo Lemos, presbítero na Free Church of England (Igreja Anglicana Reformada do Brasil). Editor do blog ‘Olhar Anglicano’, e da revista ‘Báculo’ Também escreve para os blogues ‘Cristandade em Debate’ e ‘O Barco’.
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Bibliografia:

MacPherson escreveu no artigo ‘Deceiving and Being Deceiving’, que os pré-tribulacionistas pretendem provar a antiguidade de sua interpretação recorrendo aos escritos do Rev. Morgan Edwards, de 1788, e também aos escritos medievais de Pseudo-Ephraem, 1000 anos antes. Nessa tentativa, explica o autor, “não apenas encobrem e distorcem” o que já se publicou sobre os dois autores, mas “também ocultaram e perverteram as próprias palavras” que os dois escreveram (Preterist Archive, consultado 12 abr. 2018, tradução nossa).

2 A revista Chamada da Meia Noite é uma das publicações mais populares em defesa do Dispensacionalismo e da teoria do Arrebatamento Secreto no Brasil. A citação foi extraída do artigo ‘Distinção Entre o Arrebatamento e a Segunda Vinda’, de autoria de David Hunt, publicado originalmente pela Revista em 2012, e reproduzida no site (CHAMADA, acesso em 09 mai. 2018).

3 
O Palavra Prudente é um tradicional site de linha batista fundamentalista, criado pelo missionário norte-americano Calvin Gardner, falecido em 2016.

4 DA SILVA. Pedro Severino; Escatologia: Doutrina das últimas coisas. 1988. CPAD.

5 Eufemismo é quando uma palavra, locução ou acepção mais agradável é utilizada numa tentativa de suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção considerada menos agradável (GOOGLE, Dicionário, acesso 9 mai. 2018). Mas, ainda que suavize a linguagem, a fim de causar impacto menor, não altera o conteúdo da afirmação. Daí a o termo ser usado como sinônimo de “abrandamento, adoçamento, atenuação, comedimento, mitigação, moderação e suavização” (NORMA CULTA, acesso 9 mai. 2018).

6 PENTECOST, J. Dwigth. Manual de Escatologia: Uma análise detalhada dos eventos futuros. 2006. Editora Vida.

7 “Esta é uma palavra fiel e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (I Tim. 1:15, ARC 1995).

8 ‘Deixados Para Trás’ é um bom exemplo: a série de livros vendeu, só nos Estados Unidos, 70 milhões de exemplares, se manteve por 300 semanas na lista de best-sellers do ‘New York’, e ganhou uma versão para os cinemas.

9 Severino, por exemplo, na seção que seu livro dedica à explicar a teoria do Arrebatamento Secreto, apresenta quase 20 textos-prova, sem se dar ao trabalho de ensinar expositivamente nenhum deles. No entanto, dedica algumas páginas a explicar termos gregos que, em tese, justificariam a interpretação que ele adotou previamente (DA SILVA. Pedro Severino; Escatologia: Doutrina das últimas coisas, pgs. 12-16. 1988. CPAD). Gilberto, outro autor assembleiano, garante ao leitor que “conforme expomos acima, no arrebatamento, Jesus vem secretamente para a Igreja. Na Revelação ele vem publicamente para Israel e as demais nações”. No entanto, o que ele expõe é a teoria do arrebatamento secreto em si, e o que ela diz sobre os textos. Não há, de fato exposições dos textos apresentados, ainda que o autor faça um trabalho um pouco mais dedicado ao defender que a Igreja não passará pela Grande Tribulação, pg. 21ss (GILBERTO. Antônio, O Calendário da Profecia, pgs. 15-23. 1985.CPAD).

10 Dallas Theological Seminary, um dos principais polos de difusão da teoria. 

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