“E dizia a todos:
Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e
siga-me
(Lucas 9:23).”
A Vida cristã
pressupõe a cruz, as lutas e as provações. A Bíblia deixa claro que os cristãos
passarão por uma série de dificuldades (Fp 1.29; 2Co 4.8-10; Jo 16.33), algumas
delas justamente pelo fato de sermos cristãos (Jo 15.18-19, 1Co 4.13). Nesse
momento em que escrevo, milhares de servos de Deus padecem em prisões,
tribunais e isolamento por se recusar a adorar o Príncipe deste mundo (que se
manifesta de várias formas, através de falsas religiões, ditaduras socialistas
ou fascistas, neoateus alucinados, falsos cristãos, etc.). Por acaso aquilo que
senhores como Edir Macedo, Silas
Malafaia e Agenor Duque apregoam dizem alguma coisa a esses santos? Onde estão
as ilhas no Caribe? Há apenas o campo de concentração. Onde estão os automóveis
importados? Há apenas pés calejados e ensanguentados. Onde estão as pulseiras
de diamante? Há apenas os grilhões e algemas. Onde está o “triunfo” mundano
sobre os inimigos? De certo os cristãos perseguidos são triunfantes, mas
através da humilhação, da resignação e dos sofrimentos. Peço que leiam o artigo
com atenção até o fim. A ressalva final, alertando contra o conformismo e a
conivência (que não são baseados na fé, mas no pecado), é de importância
suprema no contexto atual.
Mesmo os cristãos
que não são perseguidos especificamente por amor ao Evangelho sofrerão
dificuldades nesta vida (Mt 6.34). Primeiramente, devido a maldição do pecado
original, o sofrimento é constante na vida do homem. O cristão tem o Espírito
Santo como Consolador (Jo 14.16-17), e a esperança da vida eterna (Rm 4.8, Tt
2.13, Ap 22; Cl 1.5) mas está sujeito a enfermidades, catástrofes naturais e
maldade humana assim como os demais homens (recomendo a leitura do artigo “É absurdo, mas não é mudo”, que pode
ser encontrado neste mesmo blog.) Melhor dizendo, mais do que estes. Devido a
militarem ao lado da Verdade, sofrem do sistema mundano que se levanta contra o
Criador. Cabe aos cristãos viverem para a glória de Deus, aceitando as
dificuldades naturais da vida, sem se deixar dominar pelo mal.
No livro “O Senhor dos Anéis”, a personagem Gandalf
diz que um rei não haveria de ser desobedecido em seu palácio, quer suas ordens
fossem sábias, quer fossem tolas. Excelente lição para nós! Como não devemos
nós, na morada de Deus, que é o nosso corpo, aceitar tudo o que Ele mandar,
sabendo que tudo o que Ele faz e diz é sábio, embora muitas vezes nos pareça loucura
ou tolice?
O apóstolo Paulo
nos relata que implorou a Deus para que retirasse dele um “espinho na carne”
(2Co 12.7_. Não sabemos do que exatamente se tratava, se uma enfermidade,
tentação, fraqueza ou outra espécie de sofrimento. No entanto, a resposta de
Deus é clara: “Minha graça te basta!”. Ora, éramos pecadores indignos e vis,
justamente condenados à morte e ao inferno, mas Deus, em sua infinita
misericórdia, nos resgatou para Si. O que mais poderíamos almejar? Não temos as
ricas promessas da vida eterna? Mesmo que Deus permita dificuldades, dores e
enfermidades em nossas vidas, devemos permanecer firmes.
Como Jesus venceu o mundo?
Por vezes, ao nos
confrontarmos com alguns adeptos da teologia da prosperidade, utilizamos um
versículo clássico: Jesus disse que no mundo teríamos aflições. Alguns deles
retrucam: mas Jesus promete que venceremos o mundo, assim como Ele venceu. Sim,
de fato. Mas COMO Jesus venceu o mundo?2 Exigindo ao Pai que não lhe desse do cálice
amargo? Fulminando o
Sinédrio e os soldados romanos?
Invocando doze legiões de anjos para lutarem ao seu lado? Descendo da
cruz e curando as chagas em sua face, mãos e pés? Não. Jesus venceu o mundo com
amor sacrificial, resignação filial, humilhação, dor, desprezo e tristeza. Os
santos passarão por momentos difíceis, como Paulo, que esteve a ponto de se
desesperar em relação a própria vida (2Co 1.8).
Tentações
Certa vez li num
folheto de uma igreja pentecostal conhecida por seu legalismo, que após a conversão,
não sentimos mais vontade de pecar. Ora, é certo que não sentimos mais alegria
em pecar, e o evitamos a todo custo. No entanto, se não nos sentimos realmente
tentados, qual é a glória de resistir a tentação? Sabemos que o diabo, o mundo
e a carne conspiram contra nossa santificação, e quanto mais severamente somos
tentados e resistimos, maior glória rendemos ao nosso Deus. Não pense que é
pelo fato de você ser cristão que, automaticamente, não se sentirá, MUITAS
VEZES, atraído pelo pecado. Cabe a você invocar a graça de Deus, com temor e
tremor, sabendo que apenas Ele, e não a sua frágil vontade, pode lhe conceder a
vitória e maior santificação (Fp 2.12-16).
Conforme escreveu
Francisco de Sales, por mais que progredirmos na santidade, a luta contra as
imperfeições não terminará nesta vida1. Lutero chamou nosso a si
mesmo de saco cheio de carne doente, e afirmava claramente que o pecado
original sempre manifestará sua força, mesmo nos cristãos3.
O cristão pode ficar triste?
Sem dúvidas. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, muitos servos de
Deus passaram por tristeza e angústias diante das dificuldades da vida,
dúvidas, enfermidades ou mesmo por razões espirituais. Elias (1Re 19.4), Jeremias
(Livro das Lamentações), Davi (Sl 13.1-2; 1Sm 30.6), Maria(Lc 2.35) e o próprio
Filho de Deus (Lc 22.39-45; Mc 14.34) encarnado se entristeceram. A tristeza
pode produzir bons frutos, como atesta o sábio Salomão (Ec 7.3). Só não devemos
nos deixar afundarmos na tristeza e no desespero, pois temos ricas promessas de
consolo e auxílio.
Na História da
Igreja, a angústia de grandes servos de Deus se mostrou proveitosa. O que
influenciou Lutero em sua busca pela graça de Deus? A angústia espiritual pela
qual passou em muitos momentos de sua vida. João da Cruz, frade carmelita e
escritor espiritual espanhol do século XVI, nos fala da “noite escura da alma”.
William Cowper, John Bunyan, Charles Spurgeon, Martin Luther King Jr, Madre
Teresa de Calcutá, Paulo da Cruz, entre
outros santos, passaram por momentos tenebrosos, sendo que alguns deles, com os
diagnósticos médicos modernos, poderiam ser classificados como portadores de
transtorno depressivo (questão que trataremos com mais cuidado em outra parte
do texto).
O cristão pode ter enfermidades?
Sabemos que as
enfermidades contrariam o propósito amoroso de Deus para a humanidade feita à
sua imagem e semelhança. Na Antiga Aliança, havia a promessa de saúde abundante
caso Israel como um todo obedecesse aos mandamentos de Deus. No entanto, mesmo
israelitas fiéis, como o profeta Eliseu (2Re 13.14), passaram por enfermidades,
o que nos mostra que tal promessa era temporária e indicava algo mais profundo
e importante: a cura do espírito.
No Novo Testamento, Jesus
curou muitos enfermos, e indicou a cura divina como um sinal do reino de Deus
(Lc 13.32). Os apóstolos receberam também o poder de efetuar tais sinais (Lc
10.1-9), e o dom da cura foi estendido à Igreja (1Co 12.9). Ao longo de sua
História, o ministério de muitos pregadores teria sido seguido de sinais miraculosos4, embora a cura
divina não seja uma regra, e sim uma possibilidade. Podemos e devemos orar para
que Deus cure os enfermos, mas nem sempre é de sua vontade soberana que isso
aconteça. E quando o faz, geralmente usa os meios naturais ou humanos para
realizá-lo. Deus nunca opera espetáculos pirotécnicos para satisfazer a
curiosidade humana, não precisa provar nada a ninguém e não faz as coisas de
acordo com os nossos caprichos. No parágrafo a seguir, rebateremos as
explicações errôneas que os pregadores da teologia da prosperidade fazem da
famosa passagem do “servo sofredor”.
Isaias 53 e o “direito da cura”
Alguns
interpretam erroneamente Isaias 53 (um dos chamados “Cânticos do Servo de
Yahweh”, classificado pelos recentes teólogos acadêmicos como pertencente ao
chamado “Deutero-Isaías”)5 ao dizer que cristãos não devem/podem
ficar doentes. No entanto, apesar de tal passagem também se referir à cura
física, ela visa principalmente à cura espiritual de nossa natureza humana
ferida pelo pecado (Is 1.5; 1Pe 2.24). Basta conferir essa ênfase nos
versículos 11 (“justificará”...”iniquidades”) e 12 (“pelos transgressores
intercedeu”). E também devemos nos lembrar que, assim como uma série de
passagens do Antigo Testamento, esta se cumpre no ministério de Jesus e na vida
da Igreja por vislumbre, e não de forma total. Um exemplo de vislumbre
espiritual é a ressurreição de Cristo (1Co 15.20-23). Através de sua
ressurreição, temos total certeza da nossa, mas ninguém é tolo o suficiente
para afirmar que esta última já ocorreu. O AT já anunciava a ressurreição, de
forma que parecesse acontecer de uma só vez (Dn 12.2-3), mas o NT esclarece que
ela se daria em duas fases: primeiro Cristo, as primícias, e depois os outros
mortos. Outros exemplos de vislumbres semelhantes dizem respeito ao
estabelecimento do Reino de Deus e aos sinais do fim dos tempos (comparar Jl
2.28-31 com At 2.14-21). que, embora estejam presentes em parte já na nossa
época, não se cumpriram e nem se cumprirão plenamente senão no fim. Assim,
quando alguém recebe uma cura física mediante a humilde súplica em nome de
Jesus, tal passagem (Is 53) se cumpre, de forma imperfeita. Ela só se cumprirá
totalmente quando nosso corpo mortal (portanto, sujeito a degradações) se
revestir da imortalidade (2Co 5.4), ou seja, em sua glorificação (Fp 3.20-21),
na ressurreição dos mortos. O Novo Testamento registra vários casos de cristãos
enfermos, e em nenhum momento mostra que tais enfermidades se dariam por
pecados pessoais ou falta de fé por parte desses irmãos. Assim, Paulo recomenda
a medicina a Timóteo (1Tm 5.23), ao invés de decretar sua cura. O grande doutor
dos gentios, em outra ocasião, teve de deixar um amigo doente (2Tm 4.20). O
fiel obreiro Epafrodito (Fp 2.26-27) passou por uma enfermidade (embora, após
isso, tenha sido miraculosamente curado).
O
testemunho da História da Igreja também registra que grandes santos passaram
por severas enfermidades, e em momento algum defenderam a estranha tese
neopentecostal de que as promessas a respeito da cura física em Isaias 53 já
estejam plenamente cumpridas em nossos dias. Agostinho, considerado o maior
teólogo da Antiguidade cristã, morreu de peste. Francisco de Assis, uma das
maiores almas que viveu no mundo, faleceu em meio a severas enfermidades.
Lutero chama a enfermidade de “glória da Igreja”6. João Calvino, grande
pastor e teólogo da Reforma protestante,
sofria de gota, enxaqueca e tuberculose. Charles Spurgeon, chamado de "o
príncipe dos pregadores", sofria de reumatismo, gota e depressão. Daniel
Berg, missionário sueco e pioneiro pentecostal no Brasil, morreu entre severa
enfermidade7. Quem são esses pregadores atuais, de capacidade moral
e intelectual duvidosas8, para apregoar que todo o povo de Deus
esteve enganado por dezenove séculos, e só em meados do século XX uma suposta
verdade inquestionável da Bíblia (que crentes não devem/podem ficar doentes),
ressurgiu por meio deles, que a si próprios se fazem, dessa maneira, mais
iluminados e abençoados do que os demais?
Outro argumento
contra essa interpretação rasteira e descontextualizada de Isaias 53 é que, se
de fato os problemas físicos houvessem sido totalmente anulados na cruz, os
cristãos não mais morreriam, nem mesmo de velhice, pois sabemos que processos
semelhantes aos que desencadeiam o envelhecimento e a morte são os que
desencadeiam as enfermidades. E não seria estranho que o pecado, a morte
física, e os sofrimentos continuassem existindo na vida dos cristãos, e apenas
as enfermidades fossem anuladas?
Ainda, para
mostrar como deve ser feita a correta interpretação de Isaias 53, caso
queiramos tomá-la ao pé da letra, cairemos em uma contradição. Porque o
evangelista cita a profecia no início do ministério do Senhor, se o próprio
texto pede que o “levar as enfermidades” se daria na cruz? Isso só reforça o
argumento do vislumbre, ao contrário daqueles que querem um cumprimento total e
literal aqui e agora.
E a depressão clínica, tão comum em nossos dias, o que dizer?
A depressão
(assim como os demais problemas psicológicos e psiquiátricos)9 é uma
patologia proveniente do funcionamento incorreto em certos sistemas e órgãos do
corpo humano (especialmente relacionados ao sistema nervoso). Portanto, não
possuem causa fundamental definida além da própria condição. Ao contrário de
uma tristeza, tensão ou angústia numa pessoa saudável, que possuem motivos e
situações explícitos e delimitados (mesmo que, por vezes, imaginários), a
tristeza associada à depressão ou ao transtorno bipolar possui raízes
patológicas. O mesmo pode se dizer dos sintomas associados à Síndrome do
Pânico, diferentes do medo natural, comum e salutar que existe na espécie
humana Devido a problemas nos neurotransmissores e outros elementos, podem se
manifestar sintomas que, por vezes, temos dificuldades de diferenciar em relação
a problemas na alma (ou espírito), a parte imaterial do homem. Qual de nós, que
mexe com computadores, nunca experimentou dificuldades com softwares contidos
em hardwares com problemas? Se um CD (elemento físico) está riscado, ou
danificado, o programa/jogo (parte lógica) não funcionará de maneira correta. A
psiquiatria, a psicologia e a neurociência podem explicar muitas dificuldades
pelas quais passamos atualmente, através de análises do cérebro, sistema
nervos, através de testes,etc. Independente da causa, seja um “espírito
abatido”, ou um mal funcionamento no cérebro, os crentes também estão sujeitos
a passar por tristeza, medo, angústias,etc, Cada caso deve ser analisado: Falta
aconselhamento espiritual e correta crença cristã na graça divina? Ou é necessária
a ajuda da psicologia e psiquiatria? Há fatores de ordem patológica diversa? A
pessoa sente falta do carinho e companhia da família e amigos? Em alguns casos,
tudo isso deve ser combinado no tratamento.
Riqueza e pobreza
Apesar do
dinheiro em si não ser condenado nas Escrituras, o amor a ele é um grande
pecado (1Tm 6). Devido a esse risco, a Bíblia nos exorta a não perseguirmos o
lucro, a ponto de viver uma vida com coisas supérfluas (cf. O capítulo citado e
Mt 19.24). Por isso, devemos viver uma vida sóbria, sem excessos e luxos,
coisas que são adequadas àqueles que têm a esperança exclusiva nas coisas da
vida presente (1Co 15.19; 1Jo 2.17)
Analisando alguns versículos
Aqueles que
defendem o direito do cristão à propriedades materiais ignoram muitos textos
bíblicos (como os já citados), e distorcem outros tantos. Seria demorado
elencá-los todos aqui, mas examinarei alguns:
Marcos 10.30: O que receberemos nesta vida ao deixarmos tudo pelo Reino de Deus?
Muitos irmãos e irmãs (os demais cristãos e o próprio Cristo), muitas casas (os
lares dos irmãos e da igreja, que são, ou ao menos deveriam ser, abertos a
todos os fiéis), muitos campos (trabalho na obra de Deus, oportunidades de
servir ao próximo).
Romanos 12.2 Uma análise desse versículo em seu contexto nos revelará que a boa,
perfeita e agradável vontade de Deus é a nossa santificação e progresso na fé,
como a Bíblia sempre ensina. Deus muitas vezes permita que nosso corpo padeça,
e ainda assim experimentamos a boa, perfeita e agradável vontade de Deus, que
ser revelará com o prêmio eterno (2Co 4.10), não sendo portanto uma cumulação
de bens e prosperidade terrenos, que passam tão rapidamente.
3João 2: Na verdade, tal texto,
pertencendo à saudação, é o sincero desejo do apóstolo para um irmão em Cristo.
É óbvio que devemos desejar saúde e felicidade ao nosso próximo, especialmente
aos irmãos na fé. Assim sendo, a principal mensagem que o Espírito Santo nos
transmite nessa passagem é a necessidade de bons desejos para com outros
cristãos. Não se trata de uma promessa de que a vida do cristão seja livre de
dificuldades. Isso iria contra os vários versículos que já analisamos.
Versículos diversos no AT: A respeito de uma série de versículos do Antigo Testamento, não
precisamos comentar muito. A nação de Israel recebeu promessas terrenas: a
posse de Canaã, prosperidade financeira, vitória contra inimigos terrenos,etc
(Dt 28) Tais promessas estavam vinculadas à guarda da Lei mosaica. No entanto,
como os cristãos bem sabem, os hebreus não conseguiram guardar aquelas leis. E
mesmo entre aqueles que eram fiéis, havia a pobreza e enfermidades (Sl 40.17;
Dt 15.11), pois tais promessas eram fugazes, temporárias, transitórias e
imperfeitas. No Novo Testamento, os líderes da nação rejeitaram ao Messias
porque esperavam em bens terrenos: a libertação do julgo romano, a ascensão
política, militar e econômica de Israel,etc (vejamos o deboche dos precursores
da teologia da prosperidade em Mc 15.30). Por isso, Cristo foi para eles pedra
de tropeço (Sl 118.22. 1Pe 2.7-8), ao prometer bens eternos (Ef 2.7) e a
verdadeiro prosperidade, que é sobretudo espiritual.
Conclusão
É muito triste
que, em nossos dias, os cristãos queiram exigir as coisas de Deus, mesmo tendo
nas Escrituras o exemplo de Abraão, que apesar
de rico, a nada se apegara, deixando parentes e amigos, vagando por terras
estranhas, suportando afrontas de reis, esperando por longos anos a promessa de
Deus se cumprir, e chegando ao ponto de estar disposto a sacrificar aquilo que
tinha de mais precioso. É triste ver cristãos dizendo que determinam as coisas,
quando o justo Jó, cuja história se tornaria um dos temas mais discutidos da
humanidade (a ponto do psicanalista suíço Carl Jung dedicar ao tema um livro
inteiro), bendisse a Deus após perder tudo (Jó 1.21). É triste ver evangélicos
ignorantes aplaudindo um lobo ensinando que Jesus era rico, sendo que o próprio
Senhor nos diz que não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8.21). Enquanto os Pais
da Igreja mostravam-nos as belezas do sofrimento; enquanto João Crisóstomo
pregou que “Á medida que o corpo é atingido por maior quantidade de
incomodidades, mais o espírito possui esperança”10 ;enquanto os
franciscanos da Idade Média, com seus rudes hábitos, abraçavam a “Senhora Irmã
Pobreza”11, ao pregar o evangelho ao povo; enquanto a escritora
medieval inglesa Juliana de Norwich pedia uma enfermidade a Deus, para melhor
entender a paixão de Cristo12; enquanto os reformadores alistavam o
sofrimento entre as marcas da verdadeira igreja13; enquanto Calvino
disse que o pão nosso poderia ser, em certo dia, uma migalha de pão e uma gota
de água apenas14; Enquanto um fiel servo de Deus escreveu um dos
hinos mais belos da História (When peace like a river – Se paz a mais doce)
após perder duas filhas pequenas afogadas; enquanto tantos santos passaram por
severas dificuldades, enquanto os antigos crentes da Assembleia de Deus
pregavam que “ Quem quiser de Deus ter a coroa/passará por mais tribulação”(
Hino 126 da Harpa Cristã);os pregadores de nossos dias dizem que basta ser
crente, para todas as coisas (vida financeira, saúde, trabalho,etc.) darem
certo, a ponto de uma igreja apóstata (a autointitulada Igreja Universal do
Reino de Deus) ter como lema a frase “pare de sofrer”. O esmagador testemunho
das Escrituras, da Tradição e da História da Igreja nos provam que a teologia
da prosperidade é uma mera heresia, criada em meados do séc. XX, pelos
pregadores Kenyon e Kenneth Hagin (um dos gurus de pregadores como R.R. Soares).
Embora alguns
estudiosos reportem à Calvino e aos puritanos a origem da teologia da prosperidade,
tal afirmação é conceitualmente deturpada. Quase sempre o ponto de partida de
quem proclama tais coisas é o livro “A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber, que apesar de
interessante, possui uma série de problemas na visão dos historiadores atuais. Quem
leva a teologia e a História eclesiástica a sério, deve interpretar
corretamente os escritos calvinistas, entendendo a diferença entre prosperidade
pessoal e social, acumulação e investimento justo, esbanjar e investir para a
glória de Deus, prosperidade material advinda do trabalho honesto e ausência de
dificuldades pela fé,etc. Como alguém que sofreu com tantas enfermidades, e era
tão resignado, e amigo dos pobres, como João Calvino, poderia defender a
teologia da prosperidade?
Por vezes, ao
contemplar a perseverança e resignação do cristão diante do sofrimento, o pagão
se converte mais facilmente do que se acontecer um milagre estupendo. Assim, o
ladrão da cruz se converteu ao presenciar o inocente tormento do Senhor. O
jornalista socialista Malcolm Mugerridge, ateu convicto, disse que encontrou
Deus ao presenciar os rostos “cinzentos, porém iluminados”, cantando à Deus um
hino de louvor na missa de Páscoa, em uma igreja na Ucrânia, enquanto morriam
vítimas da fome perpetrada por Stalin (“Holodomor”)!15
A glória do
sofrimento cristão é sofrer de maneira perseverante e figna. Podemos sempre
recorrer a Deus em oração, implorando soluções para nossas dificuldades, mas
devemos estar prontos a aceitá-las resignadamente, se esta for a vontade de
Deus (Mt 6.10). Conforme nosso Senhor ensinou, a vontade soberana e
inescrutável dEle deve ser buscada, e não aquilo que nós, cuja justiça é como
trapos de imundície (Is 64.8), julgamos melhor ou mais confortável (Is 55.8).
Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm
8.28). Assim, diante das tentações, enfermidades, pobreza, crises, solidão e
toda a sorte de dificuldades, devem estar prontos para suportar e lutar
valorosamente, perseverando no caminho estreito (Mt 7.13-14). É necessário que passemos por muitas
tribulações para entrarmos no Reino de Deus" (At 14.22).
UMA
NECESSÁRIA RESSALVA CONTRA O CONFORMISMO
Há um perigo intrínseco diante
da exposição do valor do sofrimento e resignação cristãos. Por vezes, líderes
religiosos e políticos poderosos, cujas vidas faustosas e perfil dominador em
nada lembram os pontos citados, querem impor tal necessidade à grandes massas
de manobra, justificando a miséria, a fome, a opressão e o preconceito como
sendo “a vontade de Deus”. Tal discurso blasfemo e anticristão tem sido uma das
principais razões para o anticlericalismo, o anticristianismo e até mesmo o
ateísmo na sociedade Ocidental. Durante a Revolução Francesa ( 1789), a
Revolução Russa (1917-1922) e diversos episódios, o mal feito em nome de Deus,
durante séculos, produziu ciclos infindáveis de ódio e vingança.
Os profetas do Antigo
Testamento frequentemente denunciavam a corrupção dos poderosos. Amós chama as
socialites de sua época de “vacas de Basã” (Am 4.1-3), denunciando suas vidas
regaladas e luxuosas às custas da miséria de seus empregados. No capítulo 8 do
mesmo livro, juízes corruptos e comerciantes fraudulentos e desonestos são
igualmente condenados. Isaías disse que o Senhor se negaria a aceitar os jejuns
rituais praticados por um governo injusto que oprimia os pobres(Is 58. 1-8).
Deus é chamado de “pai dos órfãos e defensor das víúvas” (grupos sociais de
extrema vulnerabilidade no contexto) no verso 5 do Salmo 68.
No Novo Testamento, o glorioso
precursor João Batista denuncia o que, em nossos dias, poderia ser comparado à
violência policial (Lc 3.14). Falsas denúncias, extorsões, abusos de autoridade
e rebeliões desproporcionais por questões salariais (o que João diria de um “capitão
do Exército” que planejava detonar bombas em quartéis para protestar?) eram ameaçadas
com o fogo do inferno (vs. 9 e 17).
As passagens que retratam
nosso Senhor expulsando os comerciantes do Templo, enquanto derrubava suas
mesas (Mt 21.12-13; Mc 11.15-16; Lc 19.45-46); a severa admoestação de Tiago contra
os ricos (Tg 5. 1-6); o conceito que o apóstolo Paulo apresenta de “autoridade
constituída por Deus” ( aquela que honra os que fazem o bem, pune os
malfeitores, zela pela sociedade e segue e a reta justiça – Romanos 13.1-7) mostram
a compreensão cristã e evangélica da denúncia contra o erro, a maldade e a
opressão( que são instigadas pelo próprio diabo, fomentadas pelo poder da
Babilônia e do Anticristo –Ap 18). Como diz uma antiga “Benção Franciscana”: “Que Deus te abençoe com sagrada raiva à injustiça, à opressão e à
exploração de pessoas para que possas trabalhar incansavelmente pela justiça,
liberdade e paz entre todas as pessoas.”
REFERÊNCIAS
1SALES, Francisco de. Filoteia. Petrópolis. Vozes, 2012.
2A teologia luterana
sempre deu especial ênfase à “Teologia da Cruz” (em oposição a “Teologia da
Glória”). O livro “Espiritualidade da
Cruz” (de Gene Edward Vetih Jr.) é uma excelente introdução a esta maneira
dialética e paradoxal de pensamento e crença. Numa das passagens mais tocantes,
o autor relata uma história contada por um pastor luterano, na qual um senhor
de sua igreja, idoso, enfermo, submetido à hemodiálise num hospital, sempre que
ouvia da própria filha(seguidora de outra vertente teológica cristã) promessas
de cura divina garantida, desconsiderava esta bobagem, olhava para ele e fazia
o sinal da cruz, mostrando fé inabalável na vontade de Deus, que quer na paz ou
no sofrimento, nos conduz à (verdadeira) glória pelo caminho da cruz.
3CESAR, Elben M. Lenz. Conversas com Lutero. Viçosa. Ultimato.
2006
4FOSTER, Richard Rios de Água Viva. São Paulo. Vida, 2001
5Para saber mais sobre o conceito
e teorias sobre o “Deutero-Isaías”, consultar às introduções e notas
explicativas encontradas na Bíblia de
Jerusalém (Edições Paulinas) e na Nova
Bíblia Pastoral (Editora Paulus). Em
resumos, segundo tal teoria, os capítulos 40-66 do livro de Isaías são da lavra
de outro escritor, do período pós-exílico, que por razões diversas é incorporado
ao texto do profeta original, de maneira harmônica, canônica e visando os
propósitos divinos.
6LUTERO, Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja. Martin
Claret, 2007
7BERG, Daniel. Enviado por Deus. CPAD, 1995
8ANKENBERG, John e WELDON,
John Os Fatos sobre o Movimento da Fé Porto
Alegre, 1996
9Para uma maior
compreensão de conceitos e enfermidades relacionados a psiquiatria, recomendo o
livro Psiquiatria Básica(Editora Artes
Médicas, 1995). Embora o conteúdo esteja obviamente, desatualizado, o recomendo
por ser a única obra com tal abrangência e qualidade (tendo sido, inclusive,
utilizada como texto de referência de Psiquiatria no Curso de Graduação da
Faculdade de Medicina da USP e de consulta para alunos da pós-graduação sensu-latu na área de Psiquiatria) que
possuo e consulto. Independente do que tenha sido atualizado (ou mesmo
redefinido), é uma boa ferramenta para introdução nos conceitos, ferramentas,
metodologia e história deste ramo da Medicina.
10JOÃO CRISÓISTOMO. Comentário
às carta de S. Paulo Vl.2. Patrística São
Paulo. Paulus, 2010
11ROTZETTER, Anton. Com Deus nos dias de Hoje. Petrópolis.
Vozes
12JULIANA DE NORWICH. Revelações do Amor Divino. São Paulo.
Paulus, 2018.
13Teologia da Reforma. Rio de Janeiro. Thomas Nelson, 2017.
14FARIA, Eduardo Galasso
(org.) João Calvino- Textos Escolhidos.
São Paulo. Pendão Real, 2008.
15MOSLEY, Steven R. Vislumbres do Criador. Vida, 1996.
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