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domingo, 6 de maio de 2018

Liturgias protestantes: da Reforma aos dias de hoje(1)


        Do mesmo modo que criticavam os erros doutrinários e morais do papado, todos os reformadores também se levantaram contras aspectos indigestos da liturgia católica de sua época. Apesar das diferenças entre as quatro grandes famílias protestantes surgidas da Reforma (veremos as particularidades posteriormente), todos concordavam que as liturgias deveriam ser celebradas em línguas que o povo comum entendesse, que não deveria ser tributado culto à Maria e aos santos e que a Bíblia deveria ser mais traduzida, utilizada e pregada.Planejo publicar os seguintes tópicos:

  • A Liturgia católica na época da Reforma
  • A Liturgia na Reforma luterana
  • A Liturgia na Reforma suíça (e nas igrejas calvinistas)
  • A Liturgia na Reforma anglicana
  • O desenvolvimento das liturgias protestantes ao longo dos séculos
  • As liturgias protestantes em nossos dias
  • Comentários e observações pessoais minhas

            Para começar, vejamos como era a liturgia católica da época:

         Em toda a Igreja Latina, que dominava a maior parte da Europa, o culto divino, chamado de "Santa Missa", era visto como uma boa obra. O seu ápice era o sacrifício eucarístico, no qual o presbítero realizava um "upgrade" do sacrifício de Cristo, para a remissão dos pecados dos vivos e dos mortos. Tal ideia era baseada na terminologia e conceitos de alguns Pais da Igreja:
"Em seguida, oramos pelos santos padres e bispos que faleceram, e em geral por todos os que adormeceram antes de nós, acreditando que haverá muito grande benefício para as almas, em favor das quais a súplica é oferecida (...) apresentamos o Cristo imolado pelos nossos pecados, tornando propício, para eles e para nós, o Deus amigo dos homens." (CIRILO de Jerusalém, Catequeses mistagógicas).
        Nesse processo, a teologia católica também dizia que a substância do pão e do vinho desapareciam, mantendo apenas a aparência desses elementos, tornando-se a substância no corpo. sangue, alma e divindade de Cristo. Apesar de, até hoje, os apologistas católicos afirmarem que esse processo, chamado de transubstanciação, era crido pelos primeiros Pais da Igreja, sua origem pode ser atribuída apenas a teólogos medievais, especialmente Pascasio Radberto (785-865), e só foi dogmatizada de forma definitiva no século XIII (sendo que uma sofisticada defesa sua se originou dos escritos de Tomás de Aquino)  Vejamos o que os cânones do Quarto Concílio de Latrão(1215) dizem sobre o assunto
 “Há uma Universal Igreja dos fiéis, fora da qual absolutamente não há salvação. Na qual é ao mesmo tempo sacerdote e sacrifício, Jesus Cristo, cujo corpo e sangue estão verdadeiramente contidos no sacramento do altar sob as formas de pão e vinho; o pão sendo mudado (transubstantiatio) pelo divino poder no corpo, e o vinho no sangue (...) E este sacramento ninguém pode efetivar exceto o sacerdote que foi legitimamente ordenado de acordo com as chaves da Igreja” (Cânon I, do IV Concílio de Latrão).
O culto medieval possuía um clima de mistério e pompa
       O povo praticamente não participava, pois a liturgia toda era celebrada em latim. A situação da igreja na época era tão vergonhosa que, por vezes, nem os padres sabiam celebrá-la. Bernardino de Siena, famoso frade e pregador, conta-nos de um sacerdote que não conhecia o latim, sabendo recitar apenas a ave-maria nesse idioma. Por isso, passava a missa toda repetindo essa prece.  Tudo era programado para estimular fortemente os sentidos. As imagens, fosse a do Cristo crucificado no altar,as dos santos nos vitrais e esculturas e relevos da mãe do Senhor, eram vistas como "a Bíblia dos analfabetos", e eram usadas para produzir emoções no povo.  Junto às imagens, os múltiplos gestos e rituais produziam um grande espetáculo para os olhos.
O olfato era ativado pelo uso do incenso, baseado no Antigo Testamento. A música sacra, baseada no canto gregoriano e nos motetos polifônicos de grandes mestres, era belíssima mas, infelizmente, produzia no povo apenas a força de impressão, mas não a força de expressão, visto que era entoada em língua desconhecida pelos leigos. Apenas o padre, o acólito e um coro profissional cantavam.

        Os presbíteros eram chamados de sacerdotes, pois só eles poderiam oferecer o sacrifício eucarístico, que, como já vimos, teria valor salvífico. Era costume dizer que, devido a essa grande função, em certo sentido os sacerdotes superavam o poder dos anjos, O místico católico Tomás de Kempis (1380-1471), em sua clássica obra de espiritualidade, reflete a crença no status elevado dos ministros:

“Grande mistério e sublime dignidade dos sacerdotes, aos quais é dado o que aos anjos não é concedido! Pois só os sacerdotes, validamente ordenados na Igreja, têm o poder de celebrar e consagrar o corpo de Cristo”.(KEMPIS, Tomás de, Imitação de Cristo).

        Um ponto espinhoso na liturgia e teologia da época era a negação do cálice aos leigos. Violando os princípios das Sagradas Escrituras e até mesmo da Tradição dos Pais, a Igreja Ocidental passou a dar aos fiéis apenas a hóstia. Vale lembrar que a Igreja Católica do Oriente (Ortodoxa) continuava dando os dois elementos aos fiéis. Pouco antes de Lutero surgir, o povo da região da Boêmia havia conseguido, depois de violentos confrontos, que lhes fosse oferecido o cálice (O pré-reformador boêmio Jan Hus havia defendido a comunhão com os dois elementos), mas no resto da Europa, a comunhão era em apenas uma espécie

        As vestes do sacerdote eram suntuosas, e cada gesto da missa era estabelecido para que todos tivessem noção da grandiosa majestade de Deus e da santidade da Igreja. O sermão, uma das poucas partes que era feita no vernáculo, muitas vezes era omitido pelo sacerdote (isso mesmo, missas sem sermão). Este, quando era feito, muitas vezes era decepcionante. Registros da época relatam que era comum os padres pregarem que os fiéis deveriam venerar os santos todos igualmente, pois caso venerassem apenas alguns, os outros poderiam ficar enciumados, e castigariam duramente os cristãos. O povo, mais ignorante ainda, acreditava nas coisas mais absurdas. Havia quem afirmasse que os humanos não envelheciam enquanto permaneciam na missa. Outros diziam que bastava olhar uma estátua de S. Cristóvão, e pelo resto do dia se estaria protegido de sofrer acidentes. Ao lado do culto absoluto à Deus, havia o culto relativo aos santos , suas imagens e relíquias (restos mortais e objetos de uso), às quais eram atribuídos muitos milagres e curas de enfermidades.

        O calendário litúrgico celebrava o mover de Deus na redenção, principalmente através da vida de Cristo. Mas às grandes festas cristãs defendidas pelos Pais dos seis primeiros séculos da Igreja, foram acrescidas uma série de comemorações em honra à Maria e aos santos, além da festa de Corpus Christi, originária do século XIII, que celebrava o mistério da transubstanciação.

        Em resumo, a liturgia medieval era bela, reverente e nobre, mas lhe faltava edificar o povo que, entendendo pouco do que se realizava, passava o tempo rezando o rosário, outra invenção do século XIII. Uma série de superstições em relação a objetos e aos santos falecidos também havia sido acrescida. No próximo artigo, veremos como a Reforma luterana transformou as celebrações litúrgicas nos espaços em que se desenvolveu.

2 comentários:

  1. Muito bom! Mas quanto a visão da transubstanciação ter surgido apenas no século oito é difícil afirmar , pois Justino, Irineu no segundo século fala da transmutação e Cirilo de Jerusalém também . A visão realista pode ser atestada desde o início da igreja, em paralelo com a visão espiritualista predominante na escola Alexandrina.

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    1. Olá, meu caro! Creio que não me fiz entender corretamente. Me refiro a uma doutrina bem descrita, inclusive em termos filosóficos, como substância e acidente. Pelo que estudei dos Pais da Igreja, em muitas passagens há, sim, uma crença na presença real e corporal de Cristo na eucaristia, especialmente em Irineu e Ambrósio, mas não exatamente da forma detalhada que foi adotada pela Igreja Romana na Idade Média. TALVEZ a posição eucarística da maioria dos Pais fosse algo semelhante a doutrina luterana da união sacramental, preciso estudar mais para dar uma opinião mais fundamentada. Obrigado pelo comentário.

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