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sábado, 19 de maio de 2018

Liturgias protestantes: da Reforma aos dias de hoje(2)


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Liturgia luterana em pintura do século XVI
      A Reforma luterana, iniciada na Alemanha e de lá propagada para os países escandinavos e bálticos, foi a que mais conservou semelhança estética com a missa medieval. As imagens (apenas para fins estéticos e como inspiração), vestes e gestos (como o sinal-da-cruz) foram em grande medida, preservados. Em 1523, Lutero publicou uma liturgia chamada de Formula Missae, que excluía o caráter sacrificial da missa. Em 1526, publicou a “Missa Alemã”. O reformador de Wittemberg também publicaria uma liturgia batismal, que incluía vários costumes católicos, como o sinal-da-cruz, a procissão na igreja, o sal e o exorcismo1(curiosamente, o reformador defendia que as crianças fossem batizadas por imersão, como acontece nas Igrejas Ortodoxas). Em 1529, publicou uma liturgia matrimonial. Foram feitas grandes mudanças para que Deus fosse cultuado de forma mais pura, e o povo fosse edificado. O sermão passou a ter grande importância, as orações recitadas foram traduzidas para a língua comum. Um documento confessional luterano diz:

Injustamente são ao nossos acusados de haverem abolido a missa. Pois é manifesto, sem jactância, que a missa entre nós é celebrada com maior devoção e seriedade que entre os adversários. E as pessoas também são instruídas muitas vezes e com o máximo zelo sobre o santo sacramento, para que foi instituído e como deve ser usado, a saber, a fim de com ele consolar as consciências atemorizadas, através do que o povo é atraído para a comunhão e missa. Ao mesmo tempo também se dá instrução contra outras, errôneas doutrinas concernentes ao sacramento.(Confissão de Augsburgo art. 24 Da Missa)

       Até mesmo a confissão auricular foi mantida, no entanto, sem caráter de sacramento ou necessidade para a remissão dos pecados.  Ainda hoje é possível encontrar confessionários em algumas igrejas luteranas.

        Uma mudança significativa foi a introdução da comunhão em ambas as espécies, que Lutero defendeu vigorosamente em seu primeiro tratado criticando a teologia sacramental de Roma:

Mas, imagina-te que eu estivesse no lado oposto e interrogasse meus senhores papistas: Todo o Sacramento, ou seja ambas as espécies, na Ceia do Senhor foi dado apenas aos presbíteros ou simultaneamente aos leigos? Caso tenha sido dado apenas aos presbíteros (como eles pretendem), então de nenhum modo é lícito dar uma espécie aos leigos. Pois, não se deve dar temerariamente àqueles a quem Cristo, na primeira instituição, não deu. Por outro lado, se permitirmos que se modifique uma só instituição de Cristo, invalidamos todas as suas leis, e qualquer um ousaria dizer que ele não está preso a nenhuma de suas leis ou instituições. Pois uma particularidade anula na Escritura até o mais universal. Se, porém, (ambas as espécies) foram dadas simultaneamente também aos leigos, depreende-se inevitavelmente (deste fato) que não se deve negar ambas as espécies aos leigos.(LUTERO, Martinho – Do cativeiro babilônico da Igreja)

Partitura do hino Ein Feste Burg em hinário do século XVI
Em relação a música, precisamos analisar com mais cuidado e tempo. Lutero, quando criança, usava sua bela voz para cantar e conseguir um dinheiro com isso, para ajudar o pai. Mais tarde, iria aprender a tocar alaúde e cantaria como tenor no coro monástico. Sua forte ligação com a música repercutiria naqueles que, depois de sua forte, seriam conhecidos como “luteranos”. Novos hinos foram traduzidos/escritos/compostos, para que toda a congregação pudesse adorar a Deus diretamente. O próprio Lutero foi o autor/tradutor de trinta e sete deles, sendo o mais popular Ein Feste Burg (Castelo Forte), que seria, ao longo dos séculos, traduzido para vários idiomas, sendo chamado por um historiador de “A Marselhesa da Reforma”. Esse tipo de música, por vezes harmonizada a quatro vozes, simples, porém reverente, com influências do canto gregoriano e da música popular germânica, ficaria conhecido como "coral alemão". Em 1524, foi compilado o “AchtliederBuch”, primeiro hinário luterano. No entanto, ao contrário da reforma calvinista, a reforma luterana conservou os coros profissionais, para que realizassem parte do culto. Entre as gerações seguintes, surgiriam grandes mestres da música sacra, como Henrich Schütz, Michael Praetorius, Johann Pachelbel e Johann Sebastian Bach, que fariam um uso inspirado e criativo de corais, solistas, órgãos e orquestras. O culto aos santos foi encerrado, embora se conservassem memórias deles para fins de edificação e inspiração dos fiéis. Os luteranos também se utilizaram do calendário litúrgico, que relembra os grandes atos de Deus na redenção, principalmente através da vida de Cristo. Assim sendo, a observação da Quaresma, da Semana Santa e as festas da Páscoa, do Natal e do Pentecostes, entre outras, foram preservadas e adpatadas para maior edificação dos fiéis.( várias das cantatas de Bach serviam para acompanhar o calendário litúrgico).

      Existe até mesmo uma história controversa de que Lutero teria sido o inventor da Árvore de Natal. Sabemos que o reformador de Wittemberg fez uso de presépios, mas sobre a árvore de Natal, os estudos são controversos (alguns afirmam que já era um costume entre os fiéis pré-Reforma, enquanto outros afirmam ser algo mais tardio). Séculos depois, os luteranos iniciariam o tradicional costume da coroa do Advento.

Lutero pregando o Cristo crucificado
      Lutero introduziu como elemento fundamental do culto, além da eucaristia, a leitura e pregação da Palavra. Traduziu a Bíblia para o alemão. Nas décadas seguintes, outros reformadores de linha luterana traduziram a Bíblia para suas respectivas línguas, como Olaus Petri (sueco) e Mikael Agricola (finlandês). Lutero também estimulava os pregadores para que lessem as Escrituras, desenvolvessem habilidades de hermenêutica e homilética, consultassem bons livros e pregassem na linguagem do povo, para que todos fossem edificados pela Palavra de Deus.

      A arte sacra seria defendida por Lutero. Em seus escritos, Lutero condenou o movimento iconoclasta (que se opunha às imagens sacras). Assim sendo, até hoje, em muitas igrejas luteranas da Europa, podemos contemplar imagens medievais Vejamos as próprias palavras do reformador

“Quando eu escuto falar de Cristo, uma imagem de um homem pendurado   numa cruz  toma meu coração, assim como o reflexo de meu rosto aparece   naturalmente na água quando eu olho nela. Se não é pecado, mas sim bom em ter uma imagem de Cristo  em meu coração, porque deveria ser um pecado de tê-lo em meus olhos?”(LUTERO, Martinho – Contra os profetas celestiais).
      Em matéria de arte sacra, Lutero contaria com dois amigos pintores como seus discípulos: Lucas Cranach e Albrecht Durer. Cranach não apenas pintou quadros e altares, mas também foi o responsável pelos desenhos e gravuras usados na propaganda luterana contra os católicos, incluindo uma série sobre a diferença entre Cristo e o Anticristo (que seria o papado). O pintor alemão também é o autor do célebre retrato de Lutero, que todos nós conhecemos.

     Para entender a conservação de boa parte dos ritos católicos por Lutero, temos que entender o princípio que o reformador utilizou e o seu conceito de adiáforas. Lutero dizia que, em matéria de liturgia, devemos utilizar tudo aquilo que está na Bíblia, e podemos usar aquilo que não se opõe a mensagem bíblica, e com o passar dos anos se mostrou proveitoso para os fiéis. As chamadas adiáforas, coisas que a Bíblia nem ensina, nem condena, devem ser examinadas e utilizadas para a glória de Deus. Assim sendo, nas igrejas luteranas, é costume observar, além dos itens que elenquei no início, vários tipos de costumes em datas específicas do calendário litúrgico, como as palmas no Domingo de Ramos, as cinzas na primeira quarta-feira da Quaresma e o círio pascal na comemoração da ressurreição do Senhor.

       No próximo artigo, estudaremos a visão litúrgica dos reformadores suíços (especialmente Calvino) , que se espalharia pelas igrejas inspiradas por eles.



1Exorcismo aqui não se refere a prática de expulsar demônios que possuem os corpos de pessoas, mas sim de consagrar a criança a Deus, declarando-a liberta do poder maligno sob o qual todo filho de Adão  nasce.

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