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quarta-feira, 22 de novembro de 2017

As riquezas da História da Igreja: Parte 1

"E disse-lhes: Por isso, todo escriba que se fez discípulo do reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas". (Mt 13.52)

Pretendo iniciar aqui uma série de artigos sobre as riquezas ocultas na História da Igreja. Muito tem se falado em nossos dias de "se olhar para frente", "quem vive de passado é museu" e outras frases do tipo que, apesar de serem úteis em certos contextos, são totalmente estúpidas em outro. Buscando atrair as multidões, muitas igrejas têm investido em uma nova liturgia, em novos costumes, em novas doutrinas, pois senão, dizem eles, as pessoas (especialmente os jovens), não virão. Investe-se num show, onde o emocionalismo é elevado ao extremo, potentes sistemas de som fazem tremer a terra, os pastores se assemelham a animadores de palco, buscando afagar o ego dos fiéis. As pessoas querem se sentir bem, sentir que são importantes, etc.  Esse pragmatismo tem se alastrado das igrejas pentecostais de segunda e terceira onda, de onde se originou, para as igrejas tradicionais  e pentecostais históricas. Um tesouro doutrinário, espiritual e litúrgico de dois mil anos tem sido lançado fora, pois pregar a salvação eterna não dá dinheiro, hinos antigos não agradam os jovens, pregar doutrinas afasta as pessoas, etc. Os tradicionais cultos cristãos, que eram teocêntricos, visando a glória de Deus acima de tudo, se tornam meios de fuga para pessoas confusas em meio a labuta de cada dia. O que quero mostrar nesta série de artigos , são as coisas boas de nossa nobre história, e sugerir como coisas boas dos tempos atuais podem dialogar com elas. O versículo que escolhi para o início do artigo pode ser aplicado a isto: aproveitando o que há de bom no passado e no presente, dentro do contexto eclesiástico.

TEOLOGIA: DOIS MIL ANOS DISCUTINDO SOBRE AS VERDADES DE DEUS
No meio evangélico brasileiro, ainda temos certo receio da teologia. Alguns, utilizando textos fora do contexto, dizem que não devemos estudar sistematicamente as verdades da fé, pois "a letra mata" (Clique aqui para ver o artigo que eu escrevi há alguns anos sobre o assunto). Há aqueles que dizem que os teólogos tentam ser os "psicólogos de Deus", o que seria um grande absurdo. E há aqueles que simplestemente não pensam no assunto, deixando "a banda passar" ao som de mantras gospel e pregações de auto-ajuda.
A Teologia cristã tem suas bases na teologia judaica, desenvolvida por grandes mestres como Hilel, Shammai, Gamaliel e outros. Os judeus da época de Cristo haviam desenvolvido sistemas de interpretação de seus textos sagrados, e se organizavam em grupos, de acordo com crenças, práticas e contextos sociais, como os fariseus, os saduceus, os essênios, etc.
Pode parecer estranho para muitos de nós, que costumamos pensar de forma desdenhosa ao ouvir o termo "fariseu", que esse grupo tenha influenciado muito a nascente teologia cristã. Vale lembrar que Jesus criticava os excessos e a hipocrisia da maioria dos fariseus,e não a doutrinas deles em si. Nosso Senhor e seus apóstolos pregavam a ressurreição do corpo, a existência de anjos e demônios e outras crenças em comum com esse grupo. O próprio apóstolo Paulo se identificou, em vários aspectos, com os fariseus. O monoteísmo e os atributos morais e ontológicos de Deus são a principal herança teológica judaica, assim como a lei moral.
Com o tempo, era natural que os seguidores do Mestre se afastassem do judaísmo e rumassem para o surgimento de uma tradição própria, que bebia em fontes judaicas mas trazia novos elementos, como a expiação atravéz de Cristo, a inclusão dos gentios no povo de Deus, uma Nova Aliança, e uma moral extremamente nobre, que os ensinava a amar até mesmo seus inimigos. Temos nas Escrituras do NT o desenvolvimento moral e doutrinário do nascente cristianismo sobre "as próprias pernas". O apóstolo Paulo, em suas epístolas, dá a base doutrinária compartilhada até hoje pelas tradições cristãs. Tratando dos citados assuntos e de muitos outros, como a universalidade do pecado, a divindade de Cristo e sua segunda vinda, ele torna-se o principal teólogo da história cristã. Paulo teria morrido por volta da década de  60d.C. Por volta da década de 90 d.C., morre João, o último dos apóstolos. Todos os livros que hoje recebemos como canônicos já haviam sido escritos.
Mas como esses livros foram interpretados? Quem selecionou a lista dos que fariam parte da Bíblia? Como continua essa história? Infelizmente, como já disse outro irmão da Assembleia de Deus, para muitos evangélicos, há um grande vazio entre as páginas do Novo Testamento e o surgimento de suas tradições (que raramente tem mais de cem anos). Eu proponho um passeio pela História da Igreja, para que com grande alegria possamos constatar que a promessa do Senhor, de que as portas do inferno não prevaleceriam contra a Igreja, é verdadeira e fiel.
O período que se segue ao dos apóstolos, é chamado de "patrístico". Os "pais da Igreja" foram os primeiros teólogos a escrever baseados nos dois testamentos. (Neste artigo, você pode saber um pouco mais sobre eles).  Lutando pela verdadeira fé, preservada na Tradição da Igreja, enfrentando perseguições e martírios, orando e estudando, dando testemunho diante de reis e generais, esses homens interpretaram as Escrituras, chegando em consensos doutrinários expressos através de credos e tratados. Dessa forma, complicadas questões que as Escrituras nos apresentam, como a natureza e as pessoas da divindade, o pecado e a graça, as naturezas de Jesus Cristo e o sacramentos, foram se esclarecendo. Esses homens também combateram perniciosas heresias que mestres ímpios tiravam de suas mentes poluídas.
Uma das primeiras heresias a surgir no meio cristão foi o gnosticismo. Mistura de certos princípios cristãos com o paganismo dos gentios e deturpadas escolas filosóficas gregas, esse grupo pregava que suas próprias interpretações das Escrituras, conhecimentos místicos transmitidos a certos iniciados e uma boa dose de ocultismo, eram a verdade de Cristo. Surge então um valoroso bispo, Irineu, que combate magistralmente esse erro. Irineu nos mostra que a verdadeira fé permaneceu entre os bispos e presbíteros da Igreja, que passavam adiante a Tradição e zelavam pelos textos do Novo Testamento (que, na época, ainda não estavam 100% definidos). Não havia espaço para novas revelações ou interpretações deturpadas. Posteriormente, outro religioso, Vicente de Lérins irá nos dizer que a ortodoxia (verdade de fé), ao menos nos pontos básicos, é perene e universal, enquanto a heresia é cronologicamente e geograficamente limitada.
Outras heresias foram surgindo na Igreja, como o maniqueísmo, o donatismo, o novacianismo,etc. As mais perniciosas eram as corrupções da verdade sobre a natureza de Deus. Assim sendo, Tertuliano, teólogo do século II, cria o termo Trindade para se referir ao Deus vivo e verdadeiro, em oposição aos hereges sabelianos, que diziam não haver três pessoas na divindade, mas sim três manifestações diferentes da mesma pessoa. Mais de um século depois, o presbítero Ário irá afirmar que Jesus Cristo não é Deus verdadeiro com o Pai, mas sim um deus inferior e criado. Atanásio de Alexandria e outros santos homens de Deus se levantarão contra essa heresia, estabelecendo de forma definitiva a doutrina da Trindade tal qual afirmada hoje pelas verdadeiras igrejas cristãs.
Na época, as lideranças discutiam tais assuntos promovendo "concílios ecumênicos", que eram reuniões gerais da igreja, ou seja, convocando líderes de todas as partes. O primeiro destes concílios foi o de Niceia, no ano 325, que afirmou, à luz das Escrituras e da Tradição,a divindade plena de Jesus Cristo. O segundo concílio foi o de Constantinopla, em 381, que afirmou a personalidade e divindade do Espírito Santo, além da natureza humana do Salvador. O terceiro e o quarto concílios ecumênicos foram os de Éfeso (em 431) e Calcedônia (451), que trataram das duas naturezas (humana e divina) do Senhor Jesus e a ligação entre elas. Esses quatro concílios afirmaram verdades que hoje em dia são aceitas pela esmagadora maioria dos teólogos sérios.
Mas alguém pode dizer: mas esses concílios não seriam uma violação do princípio de que apenas as Escrituras devem dirigir a Igreja? De modo nenhum. Os concílios apenas organizaram de forma definitiva e sistemática as doutrinas da Bíblia. Assim sendo, antes dos concílios de Niceia e Constantinopla ensinarem a doutrina da Trindade, a mesma Trindade era adorada nas orações, nos hinos e na liturgia da Igreja, desde a época dos apóstolos.
O cânon do Novo Testamento começa a ser definido no séc. II, com Irineu, o cânon de Muratori e outros autores. Geralmente, havia consenso quanto aos evangelhos e as cartas paulinas, mas obras como as epístolas aos Hebreus e as segunda e terceira de João, e o Apocalipse provocaram certo debate. O cânon tal qual conhecemos, com os vinte e sete livros, aparece de forma definitiva na Carta Pascal de Atanásio (367) e num concílio do Norte da África(393). Não, a Bíblia não caiu do céu com capa preta e tudo. Foram necessários três séculos para que o cânon se formasse. No entanto, podemos ter segurança de que estes livros eram exatamente os que o Espírito Santo queria. Uma série de critérios seguros foram adotados para se definir o cânon. Entre eles, temos: 1. Autoria datada do primeiro século, da parte de algum apóstolo ou de alguém intimamente ligado a ele  2.Estar de acordo com a regra de fé, conjunto de ensinamentos passados pelos cristãos de geração em geração através dos legítimos presbíteros da Igreja, como vimos no caso de Irineu  3. A frequencia e importância de tais textos na liturgia das comunidades cristãs fiéis de todo o mundo, com especial destaque para as igrejas de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma, consideradas as sedes mundiais do Cristianismo.

Os pais da Igreja abordaram vários outros assuntos também, como escatologia (Irineu, Agostinho,etc.); a natureza da igreja e dos sacramentos (Cipriano, Agostinho, Ambrósio,etc.), pecado, graça e livre-arbítrio (principalmente Agostinho). Esses teólogos ortodoxos foram pedras vivas de grande importância no edifício espiritual da Igreja, e são para nós grande fonte de conhecimento e espiritualidade. Os reformadores estudaram profundamente os pais, e no meio evangélico atual surgiu um novo interesse nestes santos, que nos precederam no sagrado caminho da fé. Vários grupos heréticos de nossos dias reavivam heresias daqueles tempos, e é importante estudar como esses santos os combateram. É necessário em nossos dias o estudo da Patrística para melhor entendimento de como se desenvolveu a Igreja primitiva e as bases de nossa fé.

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